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Leonardo Sakamoto

Igreja Católica usa argumento pífio para justificar crucifixos em repartições públicas

Leonardo Sakamoto

16/01/2010 09h54

Ontem a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma nota oficial criticando o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Novamente o pomo da discórdia é a questão da retirada de crucifixos, imagens e afins de repartições públicas.

Nela, a CNBB "rejeita a criação de 'mecanismos para impeder a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União', pois considera que tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas".

Raízes históricas… Bem, a escravidão está em nossas raízes históricas. A sociedade patriarcal está em nossas raízes históricas. A desigualdade social estrutural está em nossas raízes históricas. A exploração irracional dos recursos naturais está em nossas raízes históricas. A submissão da mulher como reprodutora e objeto sexual está em nossas raízes históricas. As decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular estão em nossas raízes históricas. Lavar a honra com sangue está em nossas raízes históricas. Caçar índios no mato está em nossas raízes históricas. E isso para falar apenas de Brasil. Até porque queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.

Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas "raízes históricas", obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, instituições importantes trazem justificativas fracas como essa, que fariam São Tomás de Aquino corar de vergonha intelectual. Por outro lado, o pessoal ultraconservador do Tradição, Família e Propriedade e de suas dissidências deve estar exultante de alegria.

Em julho do ano passado, o Ministério Público do Piauí solicitou a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos, atendendo a uma representação feita por 14 entidades da sociedade civil. Em fevereiro, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Luiz Sveiter mandou retirar os crucifixos que adornavam o prédio e converteu a capela católica em local ecumênico. Ou seja, não fizeram mais do que se espera de autoridades públicas em um Estado que deveria ser laico, acolhendo todas as crenças e denominações religiosas, mas sem discriminar nenhuma delas.

Ambas as ações enfrentaram contestações que defenderam a permanência dos crucifixos por motivos religiosos ou por tradição. Tradição, sabe? Aquela coisa do "Ué! Mas sempre foi assim, por que mudar?", a que sempre se recorre quando se confronta algo do passado, nem sempre justo, com um argumento racional.

É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem engolir um símbolo cristão. Além disso, as denominações cristãs são parte interessada em várias polêmicas judiciais – de pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto (muitas vezes sendo intolerante na defesa de sua posição). Se esses elementos estão escancaradamente presentes nos locais onde são tomadas as decisões sem que ninguém se mexa para retirá-las, como garantir que as decisões serão isentas?

Por fim, o Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, em nenhuma delas. Estado é estado. Religião é religião. Pelo menos por aqui. Quem gostaria de respirar ares diferentes, pode visitar o Vaticano ou algum país islâmico em que a sharia está acima da lei dos homens.

PS: É impagável ver críticos da medida argumentado que o Cristo Redentor seria retirado do alto do Corcovado, catedrais seriam demolidas. Poupem-me, seja pelo amor de Deus ou da razão. E principalmente do bom senso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.