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Leonardo Sakamoto

Ao invés de proibir comerciais, vamos incentivá-los a dizer a verdade

Leonardo Sakamoto

07/03/2010 17h08

Não quero abrir uma discussão sobre liberdade de expressão, pois ela deveria ser o mais ampla possível sempre – e para todo mundo e não apenas meia dúzia de pessoas. Muito menos defender uma ética consequencialista. Mas lembrar que há limites do que se pode fazer ou falar, estabelecidos através da análise do que podemos causar de dano real à vida de outras pessoas. Vamos a dois casos recentes que ganharam destaque na imprensa.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária desistiu de pedir a restrição de horários dos anúncios de produtos alimentícios com altos teores de açúcar, gorduras e sódio voltados para crianças. Também largou mão de limitar a publicidade de bebidas de baixo teor nutritivo, como refrigerantes. Há quatro anos, a Anvisa havia proposto que os comerciais desses produtos ficassem de fora da faixa de programação entre 6h e 21h, em que, teoricamente, os pimpolhos estão acordados. A idéia agora é focar na política de alertar para o consumo. Isso, é claro, foi ao encontro das reivindicações da indústria e do próprio mercado publicitário. E na direção contrária de entidades que defendem que esses anúncios atingem um público (crianças) que não tem capacidade de escolher entre o que é bom e o que não é para a sua saúde.

No dia 1º de março, um dos pontos abordados durante o 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, realizado pelo Instituto Millenium, que possui proprietários de empresas de comunicação entre os diretores, as restrições de publicidade de bebidas alcoólicas, cigarros e produtos para crianças estiveram na pauta. Na discussão, foi questionado se essas tentativas de proibição teriam o objetivo de enfraquecer a imprensa através do bloqueio de seu financiamento. Novamente a palavra mágica "auto-regulação" foi lançada no ar, ou seja, que o Estado fique longe, deixando a sociedade (leia-se mercado) resolver.

Em 2008, durante um congresso de propaganda, representantes de veículos de comunicação reclamaram dos mais de 300 projetos que, segundo eles, restringiriam a liberdade de expressão comercial no Brasil. Na época, dei uma olhada em alguns deles e havia aqueles muito bizarros, que feriam a Constituição, mas também outros muito sensatos, que ajudam a proteger o cidadão de preconceito, racismo, machismo, intolerância – isso sem contar os produtos que colocam em risco a saúde das pessoas.

Alguns representantes de canais de TV e de agências de publicidade reclamaram, nesse congresso, que as empresas têm o direito de se expressar ao vender seu produto da mesma forma que os jornalistas o têm ao noticiar algo. Pergunto-me, então, se isso significa que as agências de publicidade vão começar a dar os "dois lados" ao vender um produto (não que reportagens sempre dêem os dois lados, mas pelo menos isso está lá nos manuais…)

Ter informação é fundamental para poder ter liberdade de escolha. E comprar é um ato político, pois ao adquirir um produto você dá seu voto para a forma através da qual uma mercadoria foi fabricada e mesmo o que ela representa. Então, que se abram as caixas pretas! Resgatei, abaixo, algumas sugestões de anúncios que postei na época, com base nessa nova visão da publicidade:

"Esse carro sobe qualquer montanha com seu novo sistema de tração nas quatro rodas. Mas, cuidado! Ele tem uma tampa de bagageiro que pode decepar seu dedo, pois o projeto desse utilitário foi feito às pressas para que a empresa ganhasse mais dinheiro."

"Este refrigerante contém bastante sódio, o não é muito bom para o coração. E engorda. E favorece as cáries. Mas é uma delícia! E tem bolhas."

"Este novo modelo de celular também é MP3, máquina fotográfica, agenda, acessa a internet, lava, passa e cozinha. Mas a cada 1000 produzidos, um deles tem uma bateria que vai estourar provocando graves queimaduras."

"Essa bolacha recheada é um fenômeno. Gosto incrível, textura incrível e o recheio, hummmmm, super fofinho. Tão fofinho quanto você vai ficar se comer um pacote inteirinho toda a vez que lembrar deste anúncio. Ah, e é enriquecida com vitaminas B5 e B12."

"O patê é o must. Nem dá para perceber que quatro gansos foram enjaulados e obrigados a serem alimentados por sonda noite e dia até que seu fígado, inchado, estivesse do tamanho de uma bola de tênis e ideal para ser utilizado."

"Fume este cigarro. E não se preocupe: o sistema público de saúde do país tem inaugurado ótimos hospitais para tratamento de câncer."

"A calça é para quem tem estilo. Apesar do seu custo de produção ser baixo, por ter sido feita por imigrantes escravizados em São Paulo, jogamos o preço para cima. Dessa forma, você pode ficar tranqüilo que não vai ver um pobre pé-rapado usando mesma a calça. Nunca."

"O combustível é ótimo, faz com que o motor do seu carro dure 30% a mais. Só tem um efeito colateral: ele possui tanto enxofre na fórmula que contribui mais do que qualquer coisa com a poluição das grandes cidades. Mas quem se importa com isso?"

Se for assim, vamos lutar para a liberdade de expressão total e sem restrições nas propagandas! Certamente, com os anunciantes e veículos de comunicação falando a verdade sobre o que oferecem a nós, teremos um país mais consciente na hora de comprar e, portanto, um desenvolvimento mais sustentável.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.