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Leonardo Sakamoto

Algodão: subsídios, retaliação comercial e trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

09/03/2010 09h11

A discussão gerada pela lista de produtos norte-americanos que devem sofrer sobretaxa de importação como forma de retaliação pelos subsídios concedidos aos produtores de algodão dos Estados Unidos – que prejudicaram os agricultores brasileiros – é um bom momento para tratar de um problema interno. Como estamos discutindo a imagem internacional das mercadorias que vendemos, creio que vale a pena ver como o esforço de alguns para gerar produtos de qualidade pode ser posto por água abaixo por aqueles que querem lucro fácil obtido com a transformação de pessoas em instrumentos descartáveis.

Há incidência de trabalho escravo não apenas em lavouras de algodão, mas também em outros pontos da cadeia – como bem mostra as repetidas libertações de imigrantes latino-americanos, principalmente bolivianos, em oficinas de costura em São Paulo. Hoje, os casos de empregadores flagrados com escravos nas fazendas de algodão representam cerca de 3,7% da "lista suja" do Ministério do Trabalho e Emprego, que relaciona pessoas físicas e jurídicas que se utilizaram desse tipo de mão-de-obra. Como a atividade pode ser intensiva em força de trabalho, o número de libertados chega a 7% do total da lista. Nada comparado ao gado bovino, primeiro lugar em fazendas fiscalizadas devido a esse crime, ou à cana-de-açúcar, que vem sendo campeã no número de libertados nos últimos anos. Mas ainda assim preocupante.

Há cinco, seis anos, o trabalho escravo no algodão era um problema concentrado no Mato Grosso. As ações do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério Público do Trabalho, do governo estadual, dos movimentos sociais, sociedade civil local, associações de empresários do setor e da indústria aparentemente estão conseguindo diminuir o problema por lá. Analisando a "lista suja" e as libertações de escravos nos últimos anos, verifica-se que o foco do problema no algodão migrou para o Oeste da Bahia, conhecido como uma das pontas-de-lança da expansão agrícola nacional.

Essa região gerou casos de escravos no algodão que ganharam repercussão nacional. Um exemplo foi o da fazenda Campo Aberto, palco da libertação de 82 pessoas em 2007, em que um dos sócios, Milton da Silva, é pai do falecido piloto de Fórmula 1, Ayrton Senna. Outro, em 2003, quando 259 trabalhadores foram resgatados da fazenda Tabuleiro que tinha Constantino de Oliveira, um dos donos da Gol Linhas Aéreas, como um dos sócios.

Antes que alguém grite pela falta de nacionalismo deste post, saibam que a responsabilidade pelo trabalho escravo encontrado no Brasil, nos Estados Unidos (ah, sim, eles têm e muito), no Paquistão, na China, enfim, ao redor do globo, não é apenas do produtor rural. Há redes de produção global e teias de comercialização transnacionais que ganham muito forçando os preços para baixo, em uma ode à competitividade e à transformação de pessoas em coisas em busca do aumento de rentabilidade.

Civilizar minimamente esses processos é tão fundamental quanto permitir retaliações comerciais. Sem minimizar o comportamento criminoso dos senhores de terra escravagistas, mas os atores globais são sempre esquecidos na hora de passar a fatura pela exploração mundial do trabalho. Pena que a Organização Internacional do Trabalho não tenha, nem em sonho, o mesmo "poder de polícia" que a Organização Mundial do Comércio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.