Topo

Leonardo Sakamoto

A internet e a farra dos comentários intolerantes

Leonardo Sakamoto

18/03/2010 17h33

Considerando que a internet é apenas um espaço, talvez não seja possível dizer que ela pende mais para um lado ou outro. Já aqui, no blog, boa parte dos comentários são conservadores – do meu ponto de vista, é claro. Tempos atrás, pincei algumas declarações recorrentes, publiquei (sem os nomes, é claro) e teci algumas considerações. Gerou repercussão e um bom debate. Prometi trazer novamente a relação atualizada com sugestões enviadas. Aí veio o drama mexicano causado por setores da sociedade que viam no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos uma ameaça à tradição, à família e à propriedade. Foi uma farra da intolerância nos comentários.

Com exceção daqueles que pecam pela extrema falta de bom senso e por isso são deletados (vocês não imaginam como tem gente sem noção no mundo que incita a violência e crimes de ódio) ou pela prolixidade extrema (há internautas que acham possível me salvar da perdição colando a íntegra do livro de Mateus no espaço de comentários) o que é postado é mantido. Posso até discordar veementemente do que diz o meu leitor, mas todos têm o direito à voz e a internet é um espaço para isso mesmo. Mas que dá uma paúra no estômago de vez em quando, ah, isso dá. Eis a lista atualizada com a ajuda dos leitores:

"Tá com dó de criança de rua/morador de rua/usuário de drogas? Leva para casa."
A sistemática ausência do Estado e a mais sistemática ação de determinados grupos ditos liberais de reduzir a importância da ação estatal ajudou a espalhar cada vez mais aberrações como essa. A discussão sai do âmbito das políticas públicas, que deveriam existir para dar apoio a determinadas populações fragilizadas, e passou para o espaço privado. Ou seja, sou eu que tenho que pegar cada pessoa pelo braço e dar comida em casa. Pois o Estado tem que se preocupar com coisas mais importantes, como auxiliar grandes corporações. Por outro lado, o comentário é recheado de rancor, como se a pessoa desejasse ver uma punição contra esses deslocados. "Por que tenho que me encaixar na sociedade e eles não?", deve perguntar o missivista. Daí para a desumanização e queimar índios na rua é um passo.

"Para que libertar escravos se eles vão gastar o dinheiro que ganham com cachaça, muitos deles até cometer crimes"
Sim, aparecem comentários assim por aqui. Basicamente significa algo como: liberdade é algo para aqueles que sabem desfrutá-la com comedimento. Para não dizer o outro significado, que pende para um crime de ódio. Nossa capacidade de tentar controlar a vida do semelhante não conhece limites. Até onde sei, não existe punição preventiva. Quer dizer, até existe, haja visto as mílicias rurais ou os grupos de extermínio em favelas, ou como ouvi dia desses, "atos radicais de limpeza social". Mas isso – ainda – não é lei.

"Antes de falar mal de um agricultor/pecuarista, saiba que é ele quem coloca a comida na sua mesa."
Ninguém está criticando todos os agricultores ou pecuaristas, mas apenas aqueles que fazem caca. Esse tipo de comentário usa a velha técnica de convencer os outros de que você está falando mal deles também a fim de obter parceiros na luta contra o blogueiro. Identidade reativa, sabe? Criar um inimigo comum, no caso eu, ignorando as arestas que existem entre os produtores que atuam dentro da lei e os criminosos. O pior é que eu nem como carne de boi.

"Jogue o seu diploma no lixo." "Você é um mala." "Volta para o Japão!" "Como os seus amigos te agüentam?" "Cara, você tem cara de pirralho." "Dou como 95 por cento de chances que o seu problema é falta de mulher!"
É velha tática de atacar não o argumento mas o interlocutor – talvez até por falta de fatos sustentáveis para se basear. Mas não vou negar que muitos dos comentários desse gênero são criativos – o povo se esforça! Essa é a hora mais divertida da leitura.

"Você defende o aborto, não entende os desígnios de Deus e não dá a mínima para a vida."
Exatamente porque defendo, acima de tudo, a vida é que tenho essa posição. Mas poderíamos dialogar feito gente grande sobre o tema se fossem trazidos argumentos não sobrenaturais para essa discussão. Devido aos textos defendendo o santo direito da mulher ao aborto, e carregado de raiva ou de um ímpeto evangelizador, um leitor posta diariamente quase um capítulo inteiro da Bíblia na forma de comentários neste blog – que, graças a Deus, tem filtro para segurar esse tipo de fanfarronice. Realmente, não entendo os desígnios de Deus e não faço idéia se ele joga dados. Mas me lembro de uma tira do Laerte em que Deus cria um céu mais legal para pessoas desregradas que se divertiram na vida. O aborto está longe de ser divertido, mas há pessoas que acreditam que a maior parte das mulheres que a ele recorrem adotam-no como costumeiro método contraceptivo. Afe.

"Os negros continuam nessa situação hoje porque não quiseram trabalhar pesado ao serem libertados."

O 13 de maio de 1888 representou o despejo de pessoas na rua sem um processo de inserção civil, social, econômico. Pelo contrário, foram criados instrumentos para manter a mão-de-obra farta e ao alcance, mas sem os custos da compra. Nunca o país resolveu esse problema, sempre empurrando-o com a barriga. Aí quando se fala em ações afirmativas, ou seja, tratar desiguais de forma desigual por um tempo de forma a alcançar a igualdade, o pessoal chia. "Isso é racismo contra brancos!", bradou um aqui por esses dias. Como um país quer se arvorar como uma democracia se paga bem menos para uma mulher negra que realiza a mesma tarefa que um homem branco?


"Deus criou o homem para governar e a mulher para estar ao seu lado." "O marido tem direito a bater em sua mulher." "Lei Maria da Penha não deveria existir porque em briga de marido e mulher não se deve meter a colher."

A maior parte dos comentários machistas foram anônimos neste blog. Por que será?

"Esses sem-terra são um bando de vagabundos. Apanhar é pouco, deveriam matar mais alguns para que parem de atacar a propriedade alheia."
Às vezes me pergunto quem foi que escolheu os temas dos livros de História usados nas escolas. Pois se os alunos entendessem como a política de terras no país garantiu que um punhado de pessoas concentrasse boa parte das propriedades (os dados do IBGE confirmam isso) entenderiam melhor o que significa lutar pela terra. Não é roubar, mas garantir que seja feito Justiça. Outra coisa: boa parte das vezes são pessoas desprovidas de bens materiais que transbordam fascismo ao criticar ocupações de terra. Poderíamos falar durante dias sobre o que está por trás desses discursos, mas cito a raiva diante da coragem alheia, o desejo de ascensão social que culmina na mesma posição do latifundiário, os efeitos dos discursos (muito famosos na época da Guerra Fria) de que os comunistas vão invadir sua casa e tomar até o liquidificador depois de violentar sua filha… Ou posso estar enganado e todas as pessoas que deixam esses comentários bizarros no meu blog são da TFP. Espero que não, pois imagine quando resolverem fazer um flash mob aqui na frente da minha casa?

"No meu mundo perfeito, não apenas uma oca, mas os moradores dela também seriam expostos como exemplares exóticos em zoológicos espalhados pelo mundo. Estes seres não contribuem em nada para a sociedade."
No meu mundo perfeito, o Palmeiras seria campeão todos os anos. No meu mundo perfeito, gordura de batata frita não iria entopir artéria. E, principalmente, no meu mundo perfeito, o bom senso e o respeito pelas diferenças reinariam e ninguém teria coragem de escrever um comentário assim.

"Trabalhei quando criança e isso formou meu caráter. Criança tem que trabalhar para não ficar fazendo arruaça na rua."
Boa parte dos comentários postados sobre trabalho infantil são maniqueístas: ou a criança tem que ser burro de carga ou vai assaltar nos semáforos, não existe a opção estudar-brincar-crescer. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação seja bonita o suficiente para ser copiada pelo seu filho. Mas será que eles não imaginam que o trabalho infantil não precisa ser hereditário? "O trabalho liberta", já dizia o portão do campo de concentração. No Natal, vou fazer uma lista para Papai Noel levar uma boneca de pano ou um carrinho de madeira para a porta desse pessoal amargo da vida.

"Queria ver você ter um filho homossexual."
Pode ser. Mas nosso planejamento familiar prevê filhos apenas um pouco mais para frente. Depois da Copa.

"Se você critica tanto São Paulo, seu fdp, porque não se muda daqui? Tenho orgulho de ser bandeirante, sou a locomotiva que puxa este país!"
São Paulo, ame-o ou deixe-o. Depois perguntam porque a redemocratização é lenta nas entranhas de alguns. Esse comentário estava em um post em que escrevi que parte da população de São Paulo, pobre ou rica, guarda o ranço quatrocentão, bandeirante, o nariz empinado e arrogante diante do restante do país. É aquela coisa: se você é paulista e critica o estado, bom sujeito não é. O bom é que a pseudo-hegemonia perde força a cada dia.

"A empresa X gera empregos para o Brasil. E você? Quantos empregos gera?"
Trabalho é a única coisa que gera riqueza, portanto sem força de trabalho nenhuma empresa gera riqueza real. Em outras palavras, não é um favor contratar alguém, uma vez que alguém vai ficar com o lucro obtido por essa pessoa. O dono do capital precisa do trabalhador, contudo é comum as empresas e parte da mídia inverterem o discurso, mostrando a bondade de contratar empregados. Faça-me um favor! Aliás, fico na dúvida: será que comentários assim vieram dos departamentos de comunicação cujo trabalho é garantir a imagem da empresa, de empregados de alto escalão das mesmas ou veio de trabalhadores da base que sentem orgulho de fazer parte de uma grande corporação? Se forem as opções "a" e "b", OK, faz parte do jogo. Se for a "c", começo a me preocupar pela raça humana.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.