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Leonardo Sakamoto

Para que o Dia Mundial da Água não seja lavagem de marca

Leonardo Sakamoto

22/03/2010 09h03

Acho ótimo que pessoas e empresas estejam engajadas para o Dia Mundial da Água. Portanto, espero que essa onda não seja para uma grande lavagem de marcas. Até porque água é um bem escasso e não pode ficar sendo usado para retirar manchas que só vão ser removidas com ações reais que mudem a forma como se faz negócios e não apenas perfume o que está sujo. E não é apenas o uso racional do que se retira do meio ambiente, pois água não serve só para cozinhar, tomar banho ou fazer cerveja.

Pensar racionalmente a água passa por evitar a construção de grandes hidrelétricas, que afogarão comunidades ribeirinhas ou indígenas em algum lugar da Amazônia, em detrimento a apostar em formas mais limpas de produzir energia – que hoje são caras por falta de investimento. Afinal, é necessária muita energia para fazer alumínio (aquele das latinhas) e alguém tem que pagar pelo progresso. Ou a contaminação de rios, córregos e lençóis freáticos com agrotóxicos (sugiro ótima matéria de Angela Pinho, hoje na Folha de S. Paulo, sobre como as grandes do setor, como Syngenta, Bayer e Basf, foram flagradas com irregularidades em fiscalizações).

Muito tempo atrás, durante as brigas do amianto, um advogado que defendia o interesses dos trabalhadores trouxe um pedaço do produto para ser mostrado em uma audiência judicial com os que defendiam as empresas. O amianto, acusado de causar danos à saúde dos trabalhadores, circulou na mesa. Do lado corporativo, que defendia que o produto era inofensivo como uma bola de gude, ninguém quis tocá-lo… A Anvisa está fazendo uma reavaliação toxicológica de mais de 200 substâncias químicas. A presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária, senadora Kátia Abreu (DEM-TO), alega que vetos causarão aumento de custos. O padrão é o mesmo do amianto: se o problema está longe, ele é um não-problema. Não sou eu que vou manusear os pesticidas mesmo, não sou eu que vou ter minha casa inundada por uma hidrelétrica e nunca ser ressarcido, não sou eu que vou ser acusado de não cuidar da cadeia produtiva da água. Na melhor linha, do "só é pecado se te descobrem".

Ninguém considera que quando demando um produto, mesmo que não haja água em sua fórmula, sou responsável pela forma como ele foi feito – incluindo o que ele fez com a água. Banho curto, não lavar a calçada com a mangueira, usar sistemas de descarga mais inteligentes são importantes. Mas são apenas a ponta do iceberg. A capacidade do consumidor de dizer não para marcas que criam os mais diferentes impactos na água do planeta, impactos que, às vezes, não estão à mostra, é que pode fazer a diferença no final das contas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.