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Leonardo Sakamoto

A inocência roubada de nossas crianças

Leonardo Sakamoto

10/05/2010 21h05

Milhares de crianças e jovens no Brasil abandonam a escola e trabalham desde cedo para ajudar as finanças em casa ou mesmo se sustentar. Perdem dedos nas máquinas de apurar fibras de sisal, queimam braços e pernas nos fornos de carvoarias, catam latinhas de alumínio nos lixões das grandes cidades. Em casos extremos, são obrigados a trabalhar só por comida e impedidos de sair enquanto não terminarem o serviço. A Conferência Global sobre o Trabalho Infantil, que está sendo realizada em Haia, na Holanda, discute meios de acabar com as piores formas de explorar crianças.

A meta para tanto é 2016. Particularmente, acho que não vai ser cumprida. Nem lá fora, nem aqui. Infelizmente não temos agido com a velocidade necessária para combater a miséria e a pobreza (que empurram crianças para o trabalho degradante), a impunidade (que garante a certeza de liberdade para quem rouba a infância) e a ganância (a facilidade de ganho fácil de quem explora esse tipo de mão-de-obra barata em suas cadeias produtivas). Cansei de ouvir e presenciar histórias assim nos últimos anos. Por exemplo:

A Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Pará encontrou 30 crianças escravizadas, entre um grupo de adultos, no município de Placas (PA), em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica. Fazenda de cacau. Uma das crianças ficou cega após acidente de trabalho. Ela estava carregando o cacau, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. A maioria das crianças estava doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru.

Um outro grupo de 30 crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, trabalhava na colheita de limão em condições precárias e com atraso de salário em Cabreúva, a cerca de 70 km da capital de São Paulo. A sorte deles só mudou graças a um adolescente resolver sair e denunciar à Polícia Militar que não estava recebendo remuneração pelo serviço. Passavam fome e frio.

Em um posto de combustível, ao deixar o Maranhão e entrar no Tocantins, meninas, baixinhas, franzinas, usavam a voz de criança para oferecer programas. Entravam em boléias de caminhão e, por menos de R$ 30,00, deixavam sua inocência de fora.

No Pará, em Eldorado dos Carajás, ouvi um garimpeiro reclamar que o bordel que frequentava só tinha "puta com idade de vaca velha". Ou seja, 12 anos. Para levar, de R$ 20,00 a R$ 40,00.

Uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego encontrou mais de 25 crianças e adolescentes trabalhando em matadouros públicos nos municípios de Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi, no Rio Grande do Norte. Muitos trabalhavam com os pais no descarnamento de bois e curtimento de couro sem nenhum equipamento de proteção, pisando descalços sobre o sangue derramado, com uma faca na cintura. Uma menina, de 15 anos, que retirava fezes das tripas disse que recebia em produtos para levar para casa. "Em alguns casos, o pagamento é em comida que você dá normalmente para o cachorro", afirmou a coordenadora da ação de fiscalização.

Dentre trabalhadores libertados da escravidão em uma fazenda de gado no Pará, um rapazinho de 14 anos, analfabeto, me contou que morava em uma favela na cidade com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Foi dado de presente pela mãe aos três anos de idade e trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – afinal de contas, já havia pegado uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também comprava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não é tão divertida assim. "Brincadeira lá é muito pouca", explicou ele.

Pedro perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Analfabeto, permaneceu apenas dez dias em uma sala de aula por causa da ação de pistoleiros no povoado onde ficava a escola. Depois, nunca mais. Passou fome, experimentou dengue e por dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. "Trabalhar com serra é o jeito. Senão, a gente morre de fome." Não sabia a data do seu aniversário e nem o que se comemorava no dia 1º de maio de 2003, dia em que foi encontrado pela equipe do Ministério do Trabalho e Emprego durante fiscalização na fazenda. Tinha 13 anos.

O pior de tudo? Criança trabalhando é algo normal para tanta, mas tanta gente, que se torna um serviço ingrato convencê-los de que o lugar delas é estudando e brincando. Se toda uma nação fosse contra isso, teríamos uma mudança real e seria mais fácil atacar essas formas deploráveis de exploração de nossas crianças. Mas não, pois, para muita gente, trabalhar desde cedo forja o caráter. Enquanto aguardamos o Brasil descobrir que o caminho não precisa ser esse, vamos conquistando vitórias apenas a conta-gotas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.