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Leonardo Sakamoto

Participação popular e a vergonha de protestar

Leonardo Sakamoto

29/05/2010 09h40

A esquina das ruas Apinajés e Capital Federal, em Perdizes, é uma das mais perigosas de São Paulo. Acidentes ocorrem ali quase diariamente, fazendo com que a vida dos taxistas do ponto que fica exatamente no cruzamento seja tudo, menos um tédio. Dia desses, vi o exato momento em que um carro atravessou e arrastou mais três – por sorte, dessa vez, ninguém morreu. Solicitações e petições assinadas pelos moradores para a instalação de um semáforo já foram feitas à administração municipal, mas até agora nada.

Porém, há algo mais. Três das quatro ruas dessa esquina são ladeiras, pirambeiras para falar a verdade, em que os automóveis podem quebrar a barreira do som se descerem na banguela. Motoristas com o mínimo de inteligência reduzem, param e olham antes de seguir, mas muitos optam por brincar de roleta russa, confiando na proteção de forças sobrenaturais. Feito uma transa sem camisinha. Afinal, merda só acontece com os outros.

Fossemos nós um pouco mais cientes de nossos deveres e direitos, iríamos evitar que as frustrações do dia-a-dia caminhassem para o pé do acelerador, causando danos aos outros e, ao mesmo tempo, já teríamos preparado uma pequena manifestação trancando o dito cruzamento até que o poder público ouvisse e atendesse a reivindicação por um semáforo. Mas fechar cruzamento, ocupar rua, protestar com faixas, é coisa de periferia. Não combina com um bairro nobre. Pior, atrapalha a fluidez do trânsito – que, convenhamos, é mais importante que a segurança das nossas crianças.

Exagero? É só lembrar que quando uma favela é invadida por uma enchente de esgoto ou quando uma ocupação ilegal é removida a bala e moradores, cansados de tanto reclamar e não serem escutados, resolvem ocupar uma avenida, o assunto que vai para a mídia é o trânsito e não o problema que gerou o protesto.

Há veículos de comunicação que dão manchetes para o congestionamento e relegam ao segundo plano a tragédia humana que ocorreu. Colocam depoimentos de motoristas reclamando que perderam a hora para alguma coisa, xingando os "baderneiros", mas não se ouve os moradores. Eles aparecem na tela para mostrar o "drama" e desaparecem quando já deram audiência suficiente. "Ah, mas o congestionamento afetou a vida de mais gente, por isso é a notícia mais importante." O conceito de relevância jornalística se perde em justificativas como essa, desumanizando a situação. Os dois fatos são notícia. Milhões de pessoas conseguiriam se reconhecer nessas histórias se elas fossem retratadas corretamente pela imprensa. A discussão é longa.

Um cruzamento é algo tão pequeno e insignificante. Mas capaz de revelar que nós não nos sentimos donos da cidade em que vivemos. Acreditamos que somos ocupantes provisórios. Caso tivéssemos essa necessária sensação de pertencimento, participaríamos realmente da vida da metrópole e das decisões dos seus rumos.

Ao mesmo tempo, quem rompe a barreira do conformismo e protesta é criminalizado ou reduzido a um mero causador de congestionamentos. Para esses insurgentes, que não entendem que a cidade é um organismo autônomo que lhes presta um favor por deixarem nela viver, só gás de pimenta nos olhos resolve.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.