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Leonardo Sakamoto

Quanto da Amazônia irá tombar pela Copa?

Leonardo Sakamoto

02/06/2010 08h20

Ao contrário do que sugere o senso comum, a maior parte da madeira extraída ilegalmente na Amazônia não é exportada para se tornar mesa, armário ou piso na Europa ou os Estados Unidos, mas segue para a construção civil de grandes cidades brasileiras. São Paulo, é claro, é o principal destino, mas não existe um monopólio da demanda. Se você quer saber quais os locais que são uma preocupação para a maior floresta tropical do planeta, siga os canteiros de obra.

Nos próximos quatro anos, grandes regiões urbanas passarão por transformações para receber os jogos e os torcedores da Copa do Mundo. Não só a reforma de estádios, mas também a ampliação da rede hoteleira e de serviço a turistas, além da adequação de infra-estrutura urbana, consumirá muita madeira. E umas das principais fontes será a madeira ilegal amazônica, uma vez que a aquisição de produtos certificados ainda é pequena e a existência de empresas que possuam toda sua produção certificada (e não apenas um pedacinho para usar selos como fachada) é menor ainda. Ao mesmo tempo, a rede de comercialização envolve corrupção em órgãos públicos ambientais, ineficácia de fiscalização e compradores desatentos que, juntos, criam uma situação difícil de ser resolvida.

Mais de dois terços de toda a madeira comercializada no Estado do Pará, maior vendedor de madeira amazônica no Brasil, tem origem ilegal. Essa madeira passa por um processo de "esquentamento" que funciona dentro de órgãos do governo. O Ministério Público Federal e o Ibama já confirmaram um esquema que apontaram o envolvimento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente daquele estado. Segundo eles, a venda de madeira amazônica é movida por um mercado paralelo – o de créditos de madeira. Por isso, o Pará é o segundo estado brasileiro que mais compra madeira, atrás apenas de São Paulo. O comércio, entretanto, não chega a ser consumado. O único produto que viaja é o papel que registra o crédito e que permite o esquentamento de milhares de metros cúbicos provenientes de terras indígenas, áreas de preservação permanente e demais regiões onde a exploração comercial é proibida. Um rosário de ações especiais da Polícia Federal no chamado Arco do Desmatamento tem mostrado isso nos últimos anos.

Um exemplo desse fluxo de madeira: a Sulmap Sul Amazônia Madeiras e Agropecuária, sediada em Várzea Grande (MT), e que fornecia para grandes empresas da construção civil em São Paulo, já foi autuada por crimes ambientais e acusada de envolvimento em "grilagem" de terras, crime pelo qual também foi acusada pelo Ministério Público Federal. Também foi acionada por uso de planos de manejo ilícitos e invasão de área indígena em Colniza (MT), onde fica a Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo. O local é palco de conflitos violentos, e a madeireira é acusada de incentivar atividades de associação de posseiros para expulsar os índios do território. Empregados da empresa já foram presos acusados de pagamento de propina para liberação de caminhões trafegando com carga irregular.

Quando participei do rastreamento da cadeia produtiva em que a Sulmap estava inserida, descobrimos que ela terminava em mais de 40 edifícios, muitos deles de alto padrão, localizados em bairros como Morumbi, Brooklin e Moema.

Muito se fala em ações para garantir que a Copa do Mundo e as Olimpíadas do Rio sejam eventos verdes, que respeitem o meio ambiente. Mas sustentabilidade não se resume à montagem de um sistema de coleta de lixo reciclável ou à compensação da emissão de carbono nas obras. Isso é mitigação e perfumaria comparado ao impacto direto causado pela degradação ambiental causada pela demanda de produtos florestais sem a devida verificação da legalidade de sua cadeia produtiva.

Alguns governos municipais e o parte do setor de construção civil já vêm desenvolvendo ações para a compra de produtos certificados, mas isso ainda é pouco. É necessário aproveitar este momento para alterar a lei federal de licitações, incluindo critérios sócio-ambientais, reformar o mercado de madeira para evitar fraudes (pelo menos as mais grosseiras), incentivar a certificação, desenvolver um processo público de rastreamento e punir rigorosamente os culpados. Além de aumentar a cultura do consumo responsável entre os grandes compradores, adotando medidas para que eles fiquem sem financiamento público ou sejam acionados legalmente caso comprem madeira de origem ilegal.

O ato da compra é um ato político poderoso. Através dele damos um voto de confiança para a forma pela qual determinada mercadoria é produzida. Um exercício democrático que não é exercido apenas a cada quatro anos, mas no nosso dia-a-dia. E que pode ditar o destino da maior floresta tropical do mundo e de sua gente. Ou seja, também cabe a cada um de nós, dentro e fora do país. Barbaridades não podem ser justificadas em nome das festas de 2014 e 2016.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.