Topo

Leonardo Sakamoto

A polêmica do dendê para além da moqueca

Leonardo Sakamoto

06/06/2010 14h29

Meus amigos do Espírito Santo e da Bahia não se entendem quanto a qual moqueca é mais saborosa: a tradicional, feita na Boa Terra, que leva azeite de dendê, ou a capixaba, mais leve, cozida sem dendê. Na dúvida, fico com as duas.

Mas o fruto dessa palmeira, que tem um lugar de destaque em nossa culinária, está no centro de uma outra polêmica, que pode causar uma bela indigestão para o meio ambiente e as comunidades tradicionais se não tratada de maneira certa.

O governo federal irá lançar, nesta semana, o seu plano para safra 2010/2011 com linhas de financiamento especiais para produtores que quiserem recompor áreas desmatadas ou que desejam produzir matéria-prima para agrocombustíveis, como o dendê.

Aí reside o problema. O dendê tem sido duramente criticado por organizações da sociedade civil em todo o mundo por promover desmatamentos e expulsão de pequenos agricultores. Já desterrou gente na Indonésia, Malásia, Papua Nova Guiné, Filipinas, Camarões, Uganda, Costa do Marfim, Camboja, Tailândia, Colômbia, Equador, Peru, Guatemala, México, Nicarágua e Costa Rica. Tratado como "herói da economia" pelo mercado mundial (se os usineiros da cana são "heróis" para o nosso presidente, o dendê tinha que ser herói para alguém…), a palmácea tem a maior produtividade de óleo por hectare dentre todas as oleaginosas comerciais.

O dendê tem espaço consolidado no abastecimento das indústrias alimentícia e cosmética da Europa, do Japão e dos EUA, e sua utilização para produção de biodiesel, destinado sobretudo ao consumo interno dos países de origem, tem crescido à medida que é usado como mecanismo regulador dos preços internacionais do óleo bruto. Porém, a valorização ascendente do óleo de dendê acabou causando uma catástrofe ambiental e social nos países acima mencionados.

Por aqui, o dendê ainda não teve seu papel ou seu impacto definidos. Do ponto de vista biológico, o dendezeiro tem características que o tornam uma espécie apropriada em processos de recuperação de áreas degradadas na Amazônia e, do ponto de vista social, a cultura tem revelado potencial de geração de empregos, já que todo o seu manejo é manual. Cultivado mais extensivamente no Pará e no Sul da Bahia, o ele ainda não está na lista dos grandes vetores do desmatamento ou dos conflitos socioambientais por aqui.

Esta situação pode mudar com a aprovação de uma alteração no Código Florestal, que permitirá, entre outros, a recuperação das reservas florestais na Amazônia (80% da área das propriedades rurais) com espécies exóticas, incentivando a produção. O que pode ser uma dor de cabeça, uma fez que as áreas degradadas não são contínuas, e a implantação de grandes projetos de plantio poderia levar a desmatamentos das faixas intermediárias de floresta. Os impactos de uma dendeicultura massiva sobre um bioma tão megadiverso como a Amazônia também não foram mensuradas ainda, assim como são imprevisíveis os efeitos sobre as comunidades tradicionais e sobre a agricultura familiar da região.

As características positivas poderiam fazer do dendê uma alternativa econômica bem-vinda para a agricultura familiar, se cultivado em sistemas agroflorestais, em pequena escala e de forma autônoma. Mas esta não parece ser a opção prioritária das políticas públicas. Não obstante sua alta rentabilidade, o cultivo de dendê em larga escala tem um alto custo de implantação e manutenção, modelo que tende a transformá-lo em exclusividade do grande agronegócio, com eventuais projetos de integração da agricultura familiar.

O Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo, lançado pelo governo no mês passado, estabelece as diretrizes para o plantio e o financiamento do produto em pequenas, médias e grandes propriedades. O programa, que também gerou um projeto de lei enviado ao Congresso Nacional, estabelecendo a "vedação de supressão, em todo o território nacional, de vegetação nativa para o plantio de palma" e a "vedação de licenciamento ambiental para indústrias que utilizem como insumo palma de óleo cultivada em áreas não indicadas pelo zoneamento agroecológico". Ou seja, o financiamento só pode ser feito a propriedades que estão dentro desses parâmetros, mas como o projeto de lei não foi aprovado ainda, não é ilegal (apenas imoral e nonsense) derrubar floresta para plantar dendê.

Essa discussão legislativa está presente emreportagem de Verena Glass, aqui da Repórter Brasil, mostrando que apesar das ações da União e de governos estaduais para evitar impactos sociais e ambientais ligados à produção de dendê, problemas já aparecem. Depoimentos colhidos entre trabalhadores da comunidade quilombola de Jambuaçu, no município de Moju, por exemplo, revelam intoxicações com agrotóxicos, contaminações de igarapés e problemas trabalhistas com empresas com empresas envolvidas na produção de dendê. Quilombolas de Concórdia acusaram grandes empresas de pressionar agricultores a vender suas terras, ameaçando com desapropriações por falta de titulação das áreas.

Em tempo: O Zoneamento Agroecológico do Dendê estabeleceu 31,8 milhões de hectares na Amazônia e parte da costa brasileira – do Sul da Bahia ao Rio de Janeiro – como regiões aptas para a produção. O que dá pouco menos de um Maranhão ou um Vietnã de área. O que não é pouca coisa.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.