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Leonardo Sakamoto

Brasil: o celeiro (e a lata de lixo) do planeta

Leonardo Sakamoto

17/08/2010 23h00

"Uma cerimônia em Pequim celebrou os dez anos da parceria estratégica 'Lixo por Comida' no qual os países da região do Saara recebem o lixo produzido na China em troca da oportunidade oferecida aos cidadãos da região de vasculhar restos de alimentos nos contâiners e usarem a sucata para os mais diversos utensílios.

O Saara e a Antártida são os dois últimos grandes depósitos terrestres vagos de lixo no planeta. O custo mais baixo de despejar resíduos no deserto africano manteve uma vantagem produtiva para as empresas sediadas na China após o espaço do deserto de Gobi ter se esgotado. Na semana passada, a cidade de São Paulo fechou o mesmo acordo com a prefeitura de Gilbués, no Piauí."

A notícia é falsa – por enquanto. Tempos atrás, fiz um post com um exercício de futurologia pensando em matérias sobre impactos ambientais possíveis de serem publicadas daqui a uns 70 anos. Alguns me chamaram de idiota pela previsão. Concordo plenamente. Chutar 70 anos foi muito.

Leiam o trecho de uma notícia publicada pelo Uol Notícias:

"O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) divulgou nesta terça-feira (17/08) a apreensão de 22 toneladas de lixo doméstico interceptados no Porto de Rio Grande (RS). O material estava em um contêiner vindo da Alemanha e com descrição de resíduo plástico industrial. Em uma fiscalização de rotina, fiscais da Receita Federal encontraram pacotes de fraldas, embalagens de alimentos e restos de ração para animais. A carga, que saiu do porto de Hamburgo, foi apreendida no último dia 3 de agosto."

Ou, ainda, o trecho de outra, publicada na Folha de S. Paulo há pouco mais de um ano:

"A Receita Federal e o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul investigam o desembarque de 64 contêineres carregados com cerca de 1.200 toneladas de lixo tóxico, domiciliar e eletrônico nos portos de Rio Grande (RS) e Santos (SP). Na documentação entregue nas alfândegas, consta que a carga seria de polímero de etileno e de resíduos plásticos, que deveriam ser usados na indústria de reciclagem. No entanto, além de sacolas plásticas, havia papel, pilhas, seringas, banheiros químicos, cartelas vazias de remédios, camisinhas, fraldas, tecido e couro, dentre outros. Moscas e aranhas também foram encontradas nos contêineres. O que chamou a atenção é que em um dos contêineres havia um tonel com brinquedos onde estava escrito: 'Por favor: entregue esses brinquedos para as crianças pobres do Brasil. Lavar antes de usar'."

Já é prática recorrente países ricos se livrarem do seu lixo, seja ele doméstico, tóxico ou eletrônico, mandando-o para a periferia do planeta (onde as reclamações são ignoradas ou abafadas com dinheiro ou violência). Periferia que produz alimentos e matérias-primas e fica com o que é descartado. A Convenção de Basiléia regula o trânsito de lixo entre países para impedir aberrações. Mas, convenhamos, só é crime se você é descoberto.

Fica a dúvida: quanto tempo vai demorar até a notícia falsa se tornar o jornal velho que, ao invés de ir para o lixo, embrulha o peixe na feira? E, o pior: feira de onde? Provavelmente de algum lugar na África, Sudeste da Ásia ou América Latina.

(Em Gana, por exemplo – vídeo em inglês)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.