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Leonardo Sakamoto

Gilmar Mendes e o acesso à Justiça no Brasil

Leonardo Sakamoto

30/09/2010 12h47

Após ter conversado por telefone com o candidato à Presidência da República José Serra, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes interrompeu o julgamento do pedido feito pelo PT para derrubar a exigência de apresentar dois documentos na votação deste domingo (fato revelado em ótimo furo da Folha de S. Paulo). Acredita-se que a obrigatoriedade do título de eleitor mais RG/CPG/Carteira de Motorista ou Carteira deTrabalho pode prejudicar a candidata governista por afetar camadas sociais que não tiveram acesso a essa nova informação ou que não conseguiram tirar a segunda vida do título, como os mais pobres. Ou seja, Dilma poderia perder votos que, mais do que nunca, são valiosos para viabilizar um segundo turno.

Independentemente do que Serra falou ao telefone com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes ontem (como Serra o chamou de "meu presidente", eles podem ter sido uma conversa amigável sobre a família, os amigos, o Palmeiras, receitas de bolo, técnicas de conserto de chuveiros…), é fascinante como a elite brasileira, política e econômica, tem livre acesso, a qualquer hora e lugar, aos ministros das mais altas cortes do país. Enquanto que o brasileiro-comum passa anos sem conseguir uma audiência que resolva aquele maldito problema com a rede de lojas de eletrodomésticos que o colocou no pau por não ter quitado a última parcela da geladeira comprada em 48 vezes.

Ninguém aqui é idiota. É claro que a Justiça do país tem dois pesos duas medidas. Ricos e poderosos, não importa a orientação política e ideológica, conseguem acesso à Justiça – seja através de um telefone-linha-direta (como aquele vermelhinho que o Batman usava com o Comissário Gordon), seja por ter recursos para pagar bons e influentes advogados. Pobre depende dos defensores públicos (importante profissão que é maltratada em muitos estados), de Deus (se for uma pessoa de fé) ou da sorte (se não for). Como ter uma democracia de verdade dessa forma se ela é aberta e sorridente para alguns e fechada e mal-encarada para outros?

Em junho do ano passado, quando o STF derrubou a Lei de Imprensa, o que levou ao fim da obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão de jornalista (obrigatoriedade com a qual não concordava e que já escrevi sobre isso anteriormente), Gilmar Mendes soltou mais uma de suas polêmicas:

"A profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade tais como medicina, engenharia, advocacia – nesse sentido por não implicar tais riscos não poderia exigir um diploma para exercer a profissão."

Particularmente, sempre achei que o jornalismo pode causar danos mais amplos e profundos do que a queda de uma ponte ou um erro médico. A incompetência, preguiça ou má fé de nós, jornalistas, pode acabar com vidas de um dia para noite. Não fazer uma faculdade não significa exercer a profissão sem critérios e sem se responsabilizar pelas conseqüências, uma vez que elas podem ser imensas.

Agora, com a revelação da inconveniente conversa telefônica num momento em que Gilmar Mendes deveria ter distância das partes interessadas, me pergunto: ele ainda acha que a profissão é tão inofensiva assim?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.