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Leonardo Sakamoto

Nova ciclofaixa não entrará na USP encastelada

Leonardo Sakamoto

21/01/2011 15h53

Aprendi a andar de bicicleta no campus da capital da Universidade de São Paulo, localizado no bairro do Butantã. Para quem não conhece a Paulicéia, a USP possui uma imensa área verde, com praças e gramadões, enfim, um respiro na poluída e maltratada metrópole – hoje quase submersa. Minha vizinhança no Campo Limpo, bairro em que passei a infância e a adolescência, não possuía muito verde, para ser sincero, e se dependesse de aprender algo com aquelas ladeiras íngremes, seria um hábil corredor de carrinho de rolimã e não um ciclista.

Assim como eu, muitos paulistanos, ricos e pobres, usavam o campus da capital para fazer um piquenique no final de semana, empinar pipa, jogar um futebolzinho ou aquela partida de taco, namorar, caminhar, tai-chi, enfim, viver. Em outros tempos, era considerado um respeitado espaço cultural e de lazer tão importante quanto parques como o Ibirapuera ou o Carmo, com shows musicais e atividades esportivas. Sob a justificativa de garantir a segurança de salas de aula, laboratórios e escritórios, a Reitoria da universidade restringiu o acesso do campus aos domingos.

Hoje, a USP possui um muro ao seu redor – muro físico que se traduz socialmente. Os cidadãos comuns, que não têm acordos de uso do campus ou não são parte da comunidade de estudantes, professores e funcionários, acabam não podendo usufruir desse espaço público entre a tarde de sábado e o domingo – logo no momento em que teriam para descansar de uma semana de trabalho.

Tirei a foto acima de um buraco no muro da USP que observa a favela do Jardim São Remo, adjacente à universidade. A discussão não é de hoje, mas antiga. Houve muitos protestos – ainda há. Mas a Doutrina Bush Acadêmica, de segurança interna a todo o custo, deve ser bem forte porque vence sempre. Sempre ouço da boca de defensores de uma USP asséptica e árcade aos finais de semana que falta pessoal para garantir a integridade do patrimônio. E de que aquilo não é um local para se "divertir" e sim para "estudar" e "pesquisar" (fantástico como os nossos homens de saber cismam em manter essas três palavras separadas, não é? Depois perguntam porque tem gente com ojeriza à educação como ela é – mas isso é outra história).

Bem brasileiro isso, não é? A preservação do patrimônio em primeiro lugar, depois a qualidade de vida da população.

Passei quase 15 anos da minha vida na USP, seja estudando, pesquisando, dando aula, atuando em projetos de extensão universitária e nunca engoli essa história. Contratem mais gente para garantir o "patrimônio", mude-se a visão do que é a USP e a quem ela pertence. Caso contrário, a universidade continuará depondo contra o maior patrimônio de um país, que é a dignidade e felicidade de sua população – o que inclui o sagrado direito ao descanso e ao lazer. Enquanto isso, todos mantém com impostos o que apenas alguns conseguem desfrutar em sua totalidade.

Por que esse tema logo agora, sendo que a USP virou um castelo fisicamente há anos? (socialmente, nem se fala, com o fosso que a separa do resto da cidade sendo mais largo que o rio Pinheiros e o córrego Pirajussara, vizinhos à propriedade, juntos) Porque, neste domingo, serão inaugurados mais 20 quilômetros de ciclofaixas da prefeitura em São Paulo, que funcionarão das 7h às 14h (no domingo). Dêem uma olhada no novo trecho, citado em matéria publicada pelo UOL Notícias:

"O novo trecho parte do Parque do Povo, passando pela avenida Cidade Jardim, Ponte Cidade Jardim, avenidas dos Tajurás e Lineu de Paula Machado, passagem subterrânea Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, Avenida Valdemar Ferreira, Praça Vicente Rodrigues, Avenida Afrânio Peixoto, Rua Alvarenga, Ponte Cidade Universitária, Avenida Prof. Manuel José Chaves, Praça Panamericana e Avenida Prof. Fonseca Rodrigues, chegando ao Parque Villa-Lobos."

Interessante, não é? A ciclofaixa vai até a porta da USP. Da primeira vez que vi o trajeto pensei: "Pára o mundo que quero descer! A USP resolveu se lembrar que faz parte da cidade e vai abrir suas portas?" Mas em conversa com a Guarda Universitária por telefone, houve a confirmação que me deixou mais tranquilo (afinal de contas, as coisas continuam do jeito que sempre foram, cada um no seu lugar): a USP não abrirá para o povaréu. Nada do governo municipial e estadual, além da Reitoria e da Prefeitura do Campus, conversarem para buscar um alternativa?

A USP possui um muro alto ao seu redor. Talvez para as plantas não fugirem – sabe como são essas ervas daninhas. Talvez para impedir a horda de bárbaros de entrarem. O fato é que aquela curva na ciclofaixa, entre a rua Alvarenga e a Avenida Afrânio Peixoto, que leva as pessoas para longe da universidade depois de pedalarem tanto em direção a ela, é simbólica do nosso país e da forma como a nossa elite, do qual não me excluo, relaciona-se com o mundo. A USP é um orgulho para a nação e aos domingos você poderá contemplá-la de bicicleta. De longe, é claro, e sem tocar – por favor. Vai que quebra…

PS: 1) Ciclofaixas e não ciclovias permanentes. 2) A cidade não poder entrar na USP, quanto mais se apropriar dela, de verdade. Esses dois assuntos dão pano para a manga, por isso prometo retornar a eles.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.