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Leonardo Sakamoto

Compre bastante, coma muito. Mas seja magro

Leonardo Sakamoto

11/02/2011 09h07

Cravado no aeroporto involuntariamente à espera de um avião e cansado o suficiente para não pegar em trabalho, fui checar o e-mail pessoal e descobri que meu filtro de spam estava – raios! – desligado. Em poucas horas sem cuidar da caixa postal, esse nosso Tamagochi virtual, as mensagens se abundavam às centenas – talvez como vingança pela repressão a que foram subjugados por tanto tempo.

Desta vez, ao invés de apagar, resolvi ler as mensagens. (Por precaução, quem receber uma mensagem minha nos próximos dias, verifique a existência de vírus. Grato.)

A categoria mais presente nessa festa do Inbox é a do emagrecimento rápido, mostrando que esse mundo de tecnologia é mais esperto do que pensava, pois sabe até do meu IMC. "Perdi 19kg em 28 dias seguindo uma dica de Gisele"ou "Perdi 15kg e 30 dias seguindo uma dica de Ivete" – levando a crer que a tal de Gisele é mais competente, mais ansiosa, mas menos saudável que a tal da Ivete. "Emagreça dormindo" – clássico. "Quer ser feliz na vida pessoal, emagreça" – chantagista. "Esqueça as dietas. Emagreça com o shake X" – uma vida de pozinho e água deve ser boa pra diabo. "Para que sofrer emagrecendo? A cinta Y reduz três números em instantes" – esse aí entregou os pontos.

Um dia ainda compro toda essa bugiganga que me oferecem e fico saradão. Até lá, vou remoendo a minha certeza de que a gente come mal, bebe mal e vive muito, mas muito mal. Mesmo com todo o conhecimento disponível em uma sociedade de informação, seguimos fazendo besteira com o corpo. Até porque somos constantemente programados para isso.

Vamos aos fatos: em 2010, a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE apontou que 50,1% dos homens e 48% das mulheres estão com excesso de peso (na década de 70, o índice era de 18,5% e 28,7%, respectivamente). Enquanto isso, 12,5% dos homens e 16,9% das mulheres são obesos. Brasil, um país de gordos.

Além das veias entupidas de colesterol, isso é um indicador da inexorável marcha da humanidade para o buraco ou, melhor dizendo, para a geladeira, considerando que há tempos não consumimos apenas o que é necessário. Tudo bem que a definição do que seja "necessário" pode ser bastante subjetiva, ainda mais que tornamos o excesso parte do dia-a-dia. É como não saber mais o que é real e o que é fantasia ou, pior, não ter idéia de como escolher entre o caminho irreal da felicidade e a via dura da abstinência. Na dúvida entre a "pílula vermelha" e a "pílula azul" engolimos as duas e depois vemos o que acontece no estômago da Matrix.

Nossa qualidade de vida aumentou ao termos menos tempo para fazer nossas refeições e, consequentemente, optarmos por nos entupir de produtos menos saudáveis, mas mais rápidos? A entrada de classes mais pobres no consumo através de uma avalanche de carboidratos industrializados alardeados como status social na TV deve ser comemorada? O biscoito recheado é o novo Santo Graal do Brasil contemporâneo?

Tudo é muito rápido. Estamos com o diabo na rua, no meio do redemunho, como diria o velho Guimarães Rosa. Feito uma amiga que foi de 62 kg para 95 kg e depois para 52 kg – e caindo. O importante é não parar nunca, estar em estado de constante metamorfose, em movimento. Reflexão? Para que? A enxurrada de e-mail na caixa postal, a atriz bonitona na propaganda de TV, o apresentador simpático daquele programa da madrugada, todo mundo diz que não precisa. Vai, emagrace agora! E depois de perder peso de forma não-saudável e o efeito sanfona vier com tudo, é só comprar outro produto de nossa corporação: o antidepressivo.

Afinal de contas, a nossa sociedade de consumo e sua máquina de empacotar soluções ineficazes para frustrações empurra de um lado para o tamanho XXG (noves fora a máquina de propaganda que defende o santo direito à liberdade de expressão de poder convencer a criançada a comprar produtos que engordam). Simultaneamente, do outro lado, parte da mídia e da indústria da moda diz que só pode ser feliz quem cabe em um manequim 34. No máximo. E dá-lhe modelo desfilando com cara de quem comeu meia folha de alface e o bando de menininhas e menininhos suspirando para ter um corpo igual a esses palitinhos. Esquizofrênica a situação? Imagina. Tudo faz sentido. Para o bolso de alguns.

O que podemos fazer? Pensar na saúde? No próprio organismo, sabendo que ele tem suas características próprias? Lutar por informação de qualidade ao consumidor e pelo fim da venda de um modelo irreal de consumo e de beleza? Ih, japonês, você não conhece o mundo mesmo, né? Ainda bem que não, porque meu avião já está saindo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.