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Leonardo Sakamoto

Jirau: um país que vai pra frente, mas passando por cima

Leonardo Sakamoto

18/03/2011 09h51

A destruição de parte do canteiro de obras da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, causada por protestos de trabalhadores, tem sido pauta nos últimos dias. O quiprocó teria começado com uma briga entre operários e motoristas da obra, a maior em curso no país. Mas pavio aceso só explode se tiver pólvora por trás. E esta seriam as condições a que estariam submetidos os trabalhadores, o que inclui reclamações por falta de tratamento decente aos doentes, pagamento de hora extra e o não cumprimento das promessas dos recrutadores que trouxeram mão-de-obra para a usina.

Exagero? Não é o que aponta a ficha corrida da obra. Uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, no ano passado, produziu 330 autos de infração e a interditou equipamentos que estavam colocando em risco os trabalhadores da obra, que está sob responsabilidade da Camargo Corrêa, Suez, Eletrosul e Chesf.

Já em setembro de 2009, um grupo de 38 pessoas foi libertado de trabalho análogo à escravidão pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia e pelo Ministério Público do Trabalho, com apoio da Polícia Federal. As vítimas estavam trabalhando para a Construtora BS, que prestava serviço ao consórcio responsável pela construção de Jirau. Os trabalhadores foram aliciados em Parnarama (MA) por intermediários, que prometeram salários de até R$ 1,2 mil. Atraídos pela promessa de bons ganhos, descobriram que seriam submetidos a um regime de dívidas quando chegaram ao canteiro de obras. A equipe de fiscalização encontrou os trabalhadores alojados de forma precária em um barracão de madeira, sem camas, com colchões improvisados, sem instalações elétricas e sanitárias adequadas. E superlotado.

Voltando a 2010, temos mais um incidente, desta vez pitoresco, envolvendo as obras de Jirau. É comum "gatos" (contratadores de mão-de-obra a serviços de terceiros) cobrarem adiantamentos de trabalhadores rurais, endividando-os e aprisionando-os a uma situação de exploração que, muitas vezes, só é quebrada com operações que envolvem força policial. Nas obras da usina hidrelétrica de Jirau surgiu uma novidade: "gatos", provavelmente como resposta a ações de repressão, encontraram formas mais sofisticadas de burlar a lei, usando empresas formais e até boleto bancário (!) Um trabalhador, por exemplo, ficou sabendo, no interior do Maranhão, que haveria serviço farto no canteiro de obras. Porém, para conseguir acesso ao sonhado trabalho teria que pagar uma taxa de R$ 150,00 ao intermediador de mão-de-obra – senão, nada feito. Do outro lado, uma empresa contratada pelo consórcio responsável pela hidrelétrica contratou a mesma empresa para conseguir trabalhadores para a obra, pagando-a e garantindo transporte e alimentação. Ou seja, o "gato" estava ganhando de ambos os lados.

O trabalhador não tinha dinheiro para pagar a "taxa de acesso à felicidade", mas isso não era problema. Chegando em Rondônia, recebeu do irmão da aliciadora um boleto bancário da Caixa Econômica Federal no valor de 150 mangos. O problema é que ele ficou apenas dez dias no emprego e foi mandado embora. Resultado, pagando o boleto, voltaria de mãos abanando. Aliciamento é crime previsto no Código Penal, mas quem se importa?

Ninguém aqui está defendendo quebra-pau como forma de solucionar problemas. Mas não é à toa que a construção civil, setor que gera milhões de empregos diretos e indiretos, continua sendo palco de casos como esse e de histórias de exploração da dignidade do trabalhador. Com PAC, Copa, Olimpíadas, então, ninguém segura esse país! Que, desde a ditadura, "vai pra frente" – passando por cima.

No ano passado, o Planalto reclamou do excesso de fiscalização, que trava as obras e faz com que o Brasil cresça mais devagar, momento em que foi aplaudido por parte do empresariado. Essa opinião vai mudar? Difícil saber. Afinal de contas, essa gente bronzeada mostra mais seu valor com os olhos embotados de cimento e lágrima.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.