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Leonardo Sakamoto

"Faltam estudos" e "Não há evidências"

Leonardo Sakamoto

24/03/2011 09h10

"Faltam estudos que comprovem prejuízos à saúde provocados por produtos usados adequadamente."

"Não há evidências científicas de que, quando usados apropriadamente, causem efeito à saúde."

Eu adoro o discurso usado na defesa do indefensável! Mas tem que ter classe para saber usá-lo, criar o contexto correto, ter cara-de-pau, parecer acreditar naquilo. Por isso, Maluf é rei.

Quem já assistiu ao filme "Obrigado por fumar" (Thank You for Smoking, 2006), de Jaison Reitman, com Aaron Eckhart, Robert Duvall e Maria Bello, baseado no livro de Christopher Buckley, que satiriza a indústria do tabaco e as associações de lobby que atuam nos Estados Unidos, sabe do que estou falando.

É engraçado ver o discurso cínico do protagonista do filme e imaginar quantos cidadãos norte-americanos caem nesse conversê na vida real. Mas a história fica trágica quando verificamos que os mesmos discursos são descarregados sobre nós diariamente para justificar qualquer coisa. Entre elas, a expansão agropecuária irracional no Brasil. E a gente, claro, engole feito um bebê. Perda de empregos, falta de comida, interesses estrangeiros, ecatombe maia (2012 tá aí, né?), tudo é usado como desculpa para continuar passando por cima. Alguém já viu os filmes promocionais de empresas que produzem agrotóxicos? É de chorar de emoção.

A Folha de São Paulo trouxe, na quarta, uma boa reportagem apontando que foi encontrado agrotóxico em leite materno no Mato Grosso (se fosse material radioativo no leite materno de Tóquio estaria em todas as TVs daqui, mas deixa pra lá). Segue um trecho:

"O leite materno de mulheres de Lucas do Rio Verde, cidade de 45 mil habitantes na região central de Mato Grosso, está contaminado por agrotóxicos, revela uma pesquisa da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). Foram coletadas amostras de leite de 62 mulheres, 3 delas da zona rural, entre fevereiro e junho de 2010. O município é um dos principais produtores de grãos do MT. A presença de agrotóxicos foi detectada em todas. Em algumas delas havia até seis tipos diferentes do produto. Essas substâncias podem pôr em risco a saúde das crianças, diz o toxicologista Félix Reyes, da Unicamp. "Bebês em período de lactação são mais suscetíveis, pois sua defesa não está completamente desenvolvida." Ele ressalta, porém, que os efeitos dependem dos níveis ingeridos. A ingestão diária de leite não foi avaliada, então não é possível saber se a quantidade encontrada está acima do permitido por lei. "A avaliação deve ser feita caso a caso, mas crianças não podem ser expostas a substâncias estranhas ao organismo", diz Reyes."

Sensacional é o outro lado, ouvido pela reportagem:

"A Associação Nacional de Defesa Vegetal, representante dos produtores de agrotóxicos, diz desconhecer detalhes da pesquisa, mas ressalta que a avaliação de estudos toxicológicos é complexa. Segundo a entidade, faltam estudos que comprovem prejuízos à saúde provocados por produtos usados adequadamente. "Não há evidências científicas de que, quando usados apropriadamente, os defensivos agrícolas causem efeito à saúde"."

Usei a história a seguir em um post anteontem, mas vale mostrar de novo. Durante as brigas pelo banimento do amianto, um advogado que defendia o interesses dos trabalhadores trouxe um pedaço do produto para ser mostrado em uma audiência judicial com os que defendiam as empresas. O amianto, acusado de causar danos à saúde dos trabalhadores, circulou na mesa. Do lado corporativo, que defendia que o produto era inofensivo como uma bola de gude, ninguém quis tocá-lo.

Poderíamos fazer o mesmo com os que defendem que "faltam estudos" e "não há dados". Até como uma forma de mostrar que acreditam naquilo que defendem. Vamos mudar sua sede para o mesmo local em que o problema relatado acima aconteceu. Se faltam dados, não há risco comprovado, não é mesmo? Liderar pelo exemplo!

Não vou repetir o que já disse neste blog muitas vezes, mas vale lembrar que o Brasil continua sendo mais rápido para aprovar produtos químicos que trazem lucro a poucos e lento para tirá-los de circulação – quando fica provado que causam danos a muitos. Ou para controlar a sua presença no meio ambiente e seus impactos nas populações locais – usamos susbtâncias químicas como água para promover o crescimento econômico. Muitos agrotóxicos proibidos nos Estados Unidos, na União Européia e em alguns de nossos vizinhos latinos correm soltos – literalmente – contaminando água, terra e ar por aqui. E, por conseguinte, milhares de pessoas diretamente e milhões indiretamente.

E não são apenas os proibidos, um problema. Talvez um pepino maior sejam os permitidos usados sem o devido cuidado e em quantidade maior que o meio pode suportar. Quando a Anvisa faz uma reavaliação toxicológica de substâncias químicas, parte dos produtores alega que vetos causarão aumento de custos. Entendo o lado deles, mas aceitar algo que não está de acordo com os padrões mínimos é uma bomba-relógio que vai explodir em algum momento.

No Brasil, o lobby dos agrotóxicos é pesado. Daria um filme tão engraçado e trágico quanto o da indústria do tabaco. O problema seria encontrar financiador.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.