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Leonardo Sakamoto

Quem protege é condenado, quem mata está solto

Leonardo Sakamoto

03/06/2011 02h21

Marcos Gomes da Silva foi baleado em Eldorado dos Carajá (PA), nesta quarta. Tentou ir para um hospital, mas foi abordado no caminho por dois homens armados que concluíram o serviço. Com ele, são cinco mortos na região Norte – quatro apenas nas terras do "sonhado" Estado de Carajás – nos últimos dez dias.

O governo federal anunciou que não tem como garantir proteção a todos os ameaçados de morte e, por isso, vai priorizar aqueles que já foram vítimas de atentados. Em uma situação em que o Estado diz que não pode fazer muita coisa, é lógico e necessário apoiar o trabalho de militantes que atuam na proteção da vida dos mais humildes. Mas quem disse que o mundo é racional?

José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra e membro da coordenação nacional da entidade, é um dos maiores defensores dos direitos humanos que conheço. Tem incomodado latifundiários, grileiros, pistoleiros, empresários e políticos corruptos e criminosos há anos.

Em 2008, ele foi condenado pela Justiça Federal a uma pena de dois anos e cinco meses. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, o fato que originou o processo aconteceu em abril de 1999. Inconformados com a lentidão do Incra no assentamento de milhares de famílias sem-terra acampadas e com a precariedade dos assentamentos existentes, mais de 10 mil trabalhadores rurais de acampamentos e assentamentos da Fetagri e do MST montaram acampamento em frente ao escritório do órgão em Marabá. Somente após 20 dias acampados é que o governo decidiu se reunir com os trabalhadores e negociar a pauta de reivindicação.

Devido à demora de uma reunião entre representantes de trabalhadores e órgãos públicos, o povo já cansado e com fome, perdeu a paciência e entrou nas dependências do Incra, ficando em volta do auditório e impedindo a saída da equipe de negociação do prédio durante o resto da noite e início da manhã do dia seguinte. José Batista, que fazia o papel de assessor do MST e da Fetagri nas negociações, se retirou do prédio logo após a ocupação em companhia de Manoel de Serra, presidente da Contag, e Isidoro Revers, coordenador nacional da CPT à época, para tentar mediar o conflito. Mesmo assim foi processado junto com várias outras lideranças, acusado de ter impedido a equipe do governo de sair do prédio.

Em abril de 2002, o Ministério Público Federal propôs suspensão do processo, mediante pagamento de seis cestas básicas por cada um dos acusados e o comparecimento mensal à Justiça Federal, o que foi aceito por José Batista e demais acusados. Mas durante o cumprimento das condições, a Polícia Federal indiciou novamente José Batista, e teve início outro processo, em razão de um segundo acampamento dos mesmos movimentos em frente ao Incra. Novamente foi proposto a ele o pagamento de cestas básicas para a suspensão do segundo processo, tendo sido aceita a proposta. Cumpridas as condições impostas no primeiro processo e, no momento do MPF requerer a extinção do mesmo, outro juiz assumiu a vara federal de Marabá e, sem nenhum fato novo, sem ouvir o MPF, anulou todas as decisões do seu antecessor e determinou o seguimento dos dois processos contra Batista. O segundo processo prescreveu no ano passado e o primeiro resultou na atual condenação.

O julgamento do recurso de apelação protocolado pela defesa de José Batista contra a decisão deve ser analisado no próximo dia 20 de junho pela terceira turma do Tribunal Regional Federal da 1a Região.

Há um ano, a CPT entregou ao Ministro da Justiça a relação de 1.546 trabalhadores assassinados em 1.162 ocorrências de conflitos no campo nos últimos 25 anos, de 1985 a 2009. Destas, apenas 88 foram a julgamento, tendo sido condenados somente 69 executores e 20 mandantes. Dos mandantes condenados, dois estavam no xilindró, por coincidência os dois que encomendaram a morte de Dorothy Stang: os fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura e Reginaldo Pereira Galvão. Este último, contudo, recebeu da Justiça o direito de recorrer em liberdade. A palavra mágica é impunidade de quem tem para gastar.

O trabalho de Batista esteve novamente em evidência nas últimas semanas após as execuções das lideranças rurais em Nova Ipixuna e as consequentes cobranças ao governo brasileiro para que o Estado atue contra violência na região de fronteira agrícola amazônica. Você deve ter lido, visto ou ouvido Batista, pois está sendo fonte de um sem número de veículos de comunicação em toda essa crise.

Em agradecimento pelos serviços prestados à sociedade, ele foi condenado e agora tem que suar a camisa para convencer de sua inocência.

É aquela velha coisa: nenhuma boa ação fica sem punição.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.