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Leonardo Sakamoto

Dez (outras) histórias da cidade de São Paulo

Leonardo Sakamoto

07/07/2011 08h59

Tenho postado no Facebook pequenos textos que escrevi sobre grandes histórias. Já havia trazido para o blog sete delas relacionadas à capital paulista. Seguem mais dez, com alguma conexão com a cidade. Alguns são contos, a maioria crônicas. Se revelar qual é qual, perde a graça. Mas, sinceramente, importa saber? O que vale é perceber que São Paulo, bem como a vida, está nos detalhes.

Quem quiser ler as outras sete, clique aqui.

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Era bom repórter, mas não conseguia por ideias no papel. Certo dia, ao ler o jornal, o susto: seu texto estava perfeito! O editor? Não, preguiçoso demais. Virou rotina. Até que, na tocaia, flagrou a revisora dando vida ao seu texto na velha Olivetti. Ela adorava as matérias, mas sentia que faltava algo. Ele, quando a viu, entendeu o que faltava. Décadas e seguem juntos. Ela, com paciência, editando seus descaminhos.

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"Quer ser minha namorada?" Tinham sete anos e sabiam de tudo. Afinal, a vida fazia sentido. Mas foram desaprendendo a cumplicidade do cotidiano enquanto viravam gente grande. Dois casamentos depois, o reencontro. Um café puxou uma cerveja, que trouxe um cinema e, com isso, a vida fez sentido de novo. No antigo parquinho do bairro, ele gaguejou. Ela, em um gesto leve, pediu silêncio. "Agora é minha vez. Quer ser…"

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Era a mais bela dedicatória que já tinha visto. Mas o que fazia num sebo? Ela morreu? Uma desilusão após a "Primavera de 52"? Um ano de curiosidade jornalística levaram a um asilo perto da capital. Quando Maria viu o livro, chorou. Deixara-o sobre o túmulo daquele que a acompanhou por meio século. "Para guiar o caminho…" Dizem que morreu meses depois. E foi enterrada, ao lado dele, com o livro entre as mãos.

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Quando quebrou o biscoito da sorte, ele veio vazio. Ficou indignada… Os amigos que a acompanhavam no restaurante chinês haviam tirado amor, fortuna, felicidade. E ela? Nada?! Postou o caso no Facebook, reclamando para o mundo. O amigo de um amigo curtiu a história e entrou em contato – afinal, havia acontecido o mesmo com ele. E juntos descobriram que, na verdade, o biscoito não estava vazio.

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Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava. E ela foi largando sua bagagem. Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma lembrança. O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o marido. Passava as tardes na janela, esperando. Ele, todos os dias, por um ano, trouxe margaridas. Numa noite, disse: "Não precisa mais. Já te amo". E dormiu.

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Sonhava com ela à noite. E, lá, eram felizes… Após o despertador, porém, Carolina ignorava sua existência. Ele, à distância, temia não o fora, mas que seu inconsciente frustrado a banisse de seus sonhos. Contentava-se, então, com sete horas de Carol por dia. Afinal, o que é mais real que acordar feliz? Até que ela, curiosa do rapaz tímido, tomou a iniciativa. Iluminaram uma madrugada. E, nesse dia, ele não sonhou.

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Raquel ensaiava a entrada triunfal na Sapucaí há anos. Perto de fevereiro, adiava a fantasia. Até que um câncer lhe deu direito a apenas mais um Carnaval. Juntou economias, pegou um ônibus e só parou quando cruzou a Apoteose. Enfim, estava em paz. No seu último dia, riu da pressa do repórter que cumpria uma pauta. "Não é o tempo que passa voando. É a gente que atropela a vida." E confessou: "Vou viver para sempre".

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‎"Se for embora, nunca mais quero te ver." Mas aquela casa tinha ficado pequena para ela. Com tantas lembranças, mesmo boas, não sobrava lá muito espaço para seus sonhos. E, numa tarde de primavera, partiu sem receber um último abraço. Anos mais tarde, ao ligar a TV, a encontrou no meio da guerra, em inglês, empunhando um microfone. Entendera tudo. E com orgulho disse: "Tá vendo a moça bonita ali? É amiga do papai".

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‎"Qual a cor dos olhos?" Minha vó não perguntou se o neto nascera bem, mas se compartilhava o verde dela. A italianinha casara-se jovem, fugida do pai alemão, que jurou que dançaria no túmulo daquele grego maldito que a roubara dele. Poucos anos depois, após um futebol, ele morreu. Do mascate, herdei o problema no coração. Dizem que tinha olhos escuros, como eu. Mas não tenho dele uma foto sequer.

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Ele sabia ler a chuva. E escrevia pela enxada. Sua tristeza eram as mãos, feridas pela necessidade. Por nunca ter segurado um lápis, fez o impossível para seu menino. Na hora da foto de formatura, plantou fundo as mãos nos bolsos da calça surrada, com medo de envergonhar o filho doutor. Com carinho, o rapaz as colheu, abriu feito palma de flor e desferiu longo beijo. Desde então, Emanuel sorri quando olha para elas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.