Topo

Leonardo Sakamoto

Mais 18 pequenos textos sobre histórias do dia-a-dia

Leonardo Sakamoto

06/08/2011 08h22

Tenho postado no Facebook míseros contos e crônicas que escrevo sobre o nosso dia-a-dia. Esta é a quarta panelada, com 18 deles, que reúno aqui no blog. As últimas semanas foram um pouco surreais e, talvez, isso tenha se traduzido nos textos. Ou a vida, na verdade, é assim mesmo e a gente é que cisma em ignorar. Sigo agradecendo a quem tem ajudado com a inspiração para eles, compartilhando, portanto, a maldita culpa.

Para ler o que foi escrito até agora, clique aqui, aqui e também aqui.

***

Fazedor de Arco-Íris, seu avô dizia que tinha a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Nas chuvas, refugiava-se no moinho, girava a roda d'água e uma curva colorida surgia. Orgulho. Quem tem avô poderoso assim? Até que o coração do velho desabou sobre a plantação. Girou o moinho a fim de pintar para ele, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez.

***

Antônio prometeu que iluminaria o céu para o casamento do filho. Mestre vidreiro humilde, não era conhecido por seus bibelôs, mas pelos pequenos milagres. Por uma semana, soprou tanto vidro quente que a vila quase ficou sem ar. Irrevogável o "sim", abriu a porta de sua oficina e milhares de bolas de cristal subiram aos céus feitos bolhas de sabão, tornando-se estrelas e forrando a noite.

***

Deteve-se, procurando o fim do mundaréu de água, mas se perdeu no horizonte. Pela curiosidade dos pés, avançou devagar pela areia fofa. Até que receio se abriu em sorriso com o primeiro beijo fresco de brisa e as marolas lambendo seus calcanhares curtidos de roça. Com 86 anos de sertão, achava que não tinha mais lágrimas. Então, descobriu o segredo do mar: ele nunca seca por conta dos que o visitam pela primeira vez.

***

Quando ele foi buscar a flor no alto da cachoeira, Úrsula deveria ter dito não. Mas a vaidade é silêncio. Ao vê-lo lá embaixo, seu pranto foi tão alto que o rio passou a correr para trás, escalando o barranco e levando consigo a dor. Voltou para o lado dela. Dessa vez, segurou firme a mão de Arcádio, que sorriu. Mas era tarde. E para o sorriso não virar memória, ela passou a viver eternamente naquele momento.

***

Não pegou roupas, livros ou CDs. Ela estranhou que uma separação coubesse numa mochila, então fuçou para saber o que lhe era importante. Encontrou um urso de pelúcia surrado de velho, sem um olho e desbotado pela persistência. Achou aquilo idiota. Já no hotel, o urso, que nunca o abandonara desde que nasceu, deu o abraço que ela, por fim, negou. E, naquela noite, ambos sonharam com algodão-doce e maçã do amor.

***

Quando brotou Mateus, seu pai devolveu o mimo, plantando uma mangueira. Ela deu comida ao moleque impossível e emprestou seu tronco para provas de amor. Em sua sombra, pediu a mão de Ritinha. E, quando ela se foi, despencou em folhas. Nunca se soube os conselhos que a árvore lhe dava. Mas, ao voltar para a terra, pediu para descansar vigiado por ela. Dizem que a primeira manga cai justo no aniversário dos dois.

***

Em terno de linho branco e chapéu panamá, encomendou à velha senhora uma manta de algodão, lhe dando 30 dias. Com a vila em fome, ela não questionou o serviço. Debruçava-se sobre o tear às noites, feito sua avó escrava fazia. E, a cada manhã, algo inexplicável acontecia. A mandioca voltou. O riacho renasceu. As vacas engordaram. A onça sumiu. A maleita acabou. Fim de mês, retornou. Pagou a manta. E sumiu, assobiando. Dizem que cheirava a dama-da-noite.

***

Abraçou-a em silêncio. Ela queria o mundo. Ele, raízes. Viu maravilhas, sentiu tristezas. Com os anos, sua mochila foi ficando pesada. Não pelo acúmulo do que vivera, mas porque a bagagem que trouxera era maior do que imaginava. Num domingo azul, apareceu no desembarque. Estava grisalha, o rosto marcado por mil povos e a alma em paz. Ele a esperava, de mão dadas com o filho e a esposa. E, em silêncio, abraçou-a.

***

Algo havia mudado em Ulisses. Mandado para o sertão para uma reportagem, desapareceu por dias. Ressurgiu quieto, frio, cheio de si. Uns dizem que fritou, outros que cansou. Já Maria, que servia o café e era a mais sábia da redação, atestou que foi pacto com o demo. "Ele tá com o capeta no corpo." Em um estalo de tempo, passou por editor, redator-chefe até diretor de redação. Na noite em que receberia o prêmio mais importante, teve um ataque. "Ainda não!" E caiu morto.

***

Recebeu a notícia do médico com uma certa indiferença. Já imaginava, só não sabia como, nem quando. Chegando em casa, cumpriu o clichê e enumerou o que precisava fazer e o que não podia deixar de lado. Depois, amassou e jogou fora – achava listas uma coisa ridícula. Manteve algumas prioridades: viajar com amigos, viver um amor… Não contou nada a (quase) ninguém. Mas como tem ojeriza a prazos, está por aí ainda.

***

Enquanto os outros tinham um avô divertido, o dele gastava os dias em antigas fotografias. Odiava-o. E, por isso, nunca mais o viu. Anos depois, encontrou a caixa de fotos. Reconheceu-o em uma delas, pelo olhar severo, empunhando um fuzil anarquista em Guernica, antes da cidade virar Picasso. Entendeu o avô. Quem viveu a república espanhola poderia voltar para casa? E, redimido pelo tempo, tornou-se fotógrafo.

***

Conversaram horas após a aula. E, de repente, entenderam tudo. Mas uma tempestade veio e disse não. Por decisões mal tomadas, a cumplicidade entre eles os tornou melhores amigos. Dois dias antes de morrer, pediu para vê-la. Quando ela debruçou sobre a cama os mesmos olhos pelos quais se apaixonara há 50 anos, perguntou: "Vai chover?". Ela abriu um sorriso. "O céu está azul." E deram o mais verdadeiro beijo de suas vidas.

***

Acordava cansado, engolia café e corria para a redação, onde uma pauta o ansiava, e sem tempo para dizer "oi" para a repórter bonita, levava o bloquinho para a rua, depois para o computador até tomar uma bronca pelo atraso, já sonhando em engolir um sanduíche e, talvez, um chope antes de capotar. Largou tudo. Comprou um sítio. Produz morangos. Tem cachorro. Vive um amor. E perdeu medo de usar o ponto final.

***

Aureliano fora deixado numa soleira de porta. Crescido, decidiu que viveria para sempre. Então, por muitos e muitos anos, enganou a morte e o tempo. Certa noite, uma mulher bateu à sua porta e, sem explicações, o amou. Ficou por nove meses, até um bebê nascer. Depois sumiu pelo mesmo caminho de onde veio, levando o rapaz consigo. Dias depois, o bebê foi encontrado numa soleira de porta. Ganhou o nome de Aureliano.

***

Foi o último a entrar no trem. Já se iam mais de 30 anos desde que cruzou aquelas montanhas pela única vez. Queria sentir de novo o cheiro do pão da praça e das flores do coreto. Em cada parada, subiam amigos queridos, o velho pai, amores da juventude. Cochilou. Ao acordar, sozinho, avistou o lago que cobriu sua cidade há dez anos. Barragem que ele, como engenheiro, considerou sua obra-prima. Chorou como um idiota.

***

Como acidentes não fazem sentido, este o deixou em coma. Por meses, os amigos se revezaram por um milagre. Após um ano, restaram apenas dois – que tinham nele um silencioso confidente. Até que uma moça de sardas que com ele trabalhava sussurrou cinco minutos no seu ouvido. Na manhã seguinte, desapareceu, para nunca mais o encontrarem. Não se sabe o que havia no sussurro, mas era tão forte que a levou junto.

***

Mal hálito. Nem deu bom dia. Duas semanas sem sexo. Bronca por esquecer o aluguel. E a cerveja com meus amigos? Por que só eu troco a fralda? Contas. Demandas. Saudade do passado… Hoje, acabo com tudo. E, então, mesmo cansada do trabalho, me recebe com o sorriso mais lindo do mundo, diz o que preciso com um abraço forte e sem palavras e me deita no colo para um longo cafuné. "Dias melhores virão", revela. E, naquele momento, me lembro porque me apaixonei: ela sabe a verdade das coisas.

***

Com olhar severo e sem pressa, ela mexia o caldeirão de ferro fundido. De dentro, um cheiro doce e perfumado corria a casa e tomava o rumo do mundo. Horas depois, quando a lenha já era cinza e o sol se retirava, dava-se por satisfeita. Mas dentro da panela, não havia mais nada. "Tava cozinhando, não. Tava é botando ordem nas coisas." Ria-se dela. Até que vó morreu. Então, choveu três meses. E a cidade desapareceu embaixo d'água para nunca mais voltar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.