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Leonardo Sakamoto

Independência: brindarei com tubaína a morte dos desfiles

Leonardo Sakamoto

07/09/2011 13h02

Quando pequeno, lembro-me de ir a apenas um desfile do Dia da Independência. E, mesmo assim, não ter ficado o suficiente para entender o que aquele bando de gente agitando bandeirinhas estava fazendo por lá. Uma das maiores contribuições dos meus pais foi exatamente ter me poupado de toda essa papagaiada patriótica.

(No dia em que ninguém, além de autoridades, forem a um desfile desses, comemorarei com cajuína, tubaína e guaraná Jesus. E esse dia há de chegar.)

Da mesma forma, agradeço a Alá o fato de não ter interiorizado o que disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), restolhos da ditadura, tentaram me dizer – apesar dos fantásticos professores que tentaram dar outro sentido àquele malfadado currículo. Nunca entendi como algumas escolas se preocupam mais em ter alunos que saibam o hino nacional do que compreender Machado de Assis.

Sei que datas como essa servem para compartilhar (ou enfiar goela abaixo) elementos simbólicos que, teoricamente, ajudarão a nos unir como nação neste território. Mostrando que somos iguais (sic) e filhos da mesma pátria – mesmo que a maioria seja tratado como bastardos renegados.

Vamos a algumas reflexões. Desde o século 19, buscam-se parâmetros para explicar o que faz do sujeito que nasce nessa porção intertropical de terra único e o que mantém mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados sob os cuidados de um mesmo grupo. Bem, a língua portuguesa e a religião católica não são causas, mas sim conseqüências, símbolos do que nós somos. O jeitinho brasileiro (vertente simpática da corrupção e do apadrinhamento), as relações no trabalho, a paixão pelo futebol, o tipo de comida que ingerimos são todas elas conseqüências de uma formação histórica que, se não resume, ajuda a nos explicar.

Como jovem nação, com poucos anos de independência e menos ainda de liberdades individuais, sempre houve ânsia no sentido de buscar quem somos para assim tentar descobrir para aonde vamos. Não há uma teoria explicativa da identidade nacional largamente aceita, mas considera-se que houve uma evolução na maneira como se considera o "ser brasileiro".

Um importante fator que forçou a união nacional e tentou forjar uma identidade foi o próprio Estado (leia-se como "Estado", os principais jogadores do Estado, ou seja, as elites econômicas, burocráticas, políticas, midiáticas), consolidando assim sua própria integridade e poder após a proclamação da República e o fim da escravidão (sic de novo). Lançou-se para frente os problemas sociais através do discurso do "país do futuro" – e acreditamos nele. E, para tanto, foram usados tantos e tantos instrumentos – das rádio-novelas às telenovelas, do futebol à Fórmula 1.

Por mais de 100 anos, pensadores, poetas, políticos, intelectuais, músicos, tentam definir o quais os valores – se é que existem mesmo – que estão por trás do brasileiro e o que une o país como povo. Temos grandes ensaios – Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda) e a Formação do Brasil Contemporâneo (Caio Prado Júnior). Não são unanimidades, muito pelo contrário. Porém, as servem para apresentar alguns elementos importantes:

A herança portuguesa do patriarcalismo e o do patrimonialismo, que dão subsídios para entender como funcionam as relações sociais e políticas do país hoje. O conchavo, o apadrinhamento, o jeitinho brasileiro, o "sou amigo de fulano", a fusão do público e do privado, entre outras coisas. E a herança da economia. O Brasil não foi concebido como uma colônia de povoamento, mas sim de exploração. Por causa disso, nossos ciclos históricos são delimitados pelo o que podíamos oferecer para o exterior (madeira, ouro, cana, café…) O latifúndio-monocultura exportadora-escravidão moldou as relações de trabalho e de produção, a visão e o comportamento da elite e das classes populares. Ou você acha que a relação patrão-empregado no Brasil é a coisa mais saudável do mundo?

Ser brasileira e brasileiro, na verdade, é a nossa maneira particular de construir e perceber a realidade.

E, aproveitando o 7 de setembro, de que forma estamos fazendo isso? Celebrar as nossas caquéticas forças armadas (que ainda vivem sob a herança da ditadura, carregadas de pessoas cheias de pó que se mantém feito gárgulas a tudo observar e criticar) e feitos militares bisonhos deveria ser usado como subsídio para debater a nossa construção de realidade? Ou seria o momento de uma boa reflexão, coisa que precisamos cada vez mais nesses dias em que chamamos indígenas de intrusos, camponeses de entraves para o desenvolvimento e imigrantes bolivianos de vagabundos.

O melhor de tudo é que, ao levantar indagações sobre quem somos e a quem servimos e conclamar ao espírito crítico, somos acusados de não amar o país, no melhor estilo "Brasil: ame-o ou deixe-o" dos tempos de chumbo da Gloriosa.

Não amo meu país incondicionalmente, como não amo nada incondicionalmente. Mas gosto dele o suficiente para dedicar boa parte da minha vida a tentar entendê-lo e ajudar a torná-lo um local minimante habitável para a grande maioria da população. Gente deixada de fora das festas principais, entregues ao pão e circo de desfiles com tanques velhos e motos de guerra remendadas. Mas que, quando voltam para casa, encaram a realidade da falta, da ausência, da dificuldade e da fome.

Educação cívica é tornar os jovens malas sem-alça, daquelas bem chatinhas, e não puxa-sacos áulicos do país.

Qual a melhor demonstração de respeito por um país? Vestir-se de verde e amarelo e se enrolar em uma bandeira? Ou ter a pachorra de apontar o dedo na ferida quando necessário? Ama a si mesmo, por outro lado, os que se escondem do debate, usando como argumento um suposto "interesse nacional" – que pode ir do petróleo (EUA) ao etanol (Brasil) – que, na verdade, trata-se de "interesse pessoal". Se questionado, corre para trás da trincheira do patriotismo.

Afinal de contas, como disse uma vez o escritor inglês Samuel Johnson: "Patriotismo é o último refúgio de um canalha".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.