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Leonardo Sakamoto

Protestos contra a corrupção: um bom recomeço

Leonardo Sakamoto

08/09/2011 15h25

Desde sua fundação, o Brasil serve aos interesses de uma elite dominante, que sempre considerou o Estado uma continuidade de suas posses. Foi assim nas capitanias hereditárias, na época da Casa Grande das fazendas de cana-de-açúcar e café e para os coronéis do sertão e, hoje, aos da política e da comunicação. Mas temos também a pequena corrupção, da qual todos nós participamos ou somos coniventes, do cafezinho pago ao policial para evitar uma multa à caixinha para o atendente do órgão público a fim de agilizar o processo – em suma, a parte negativa do "jeitinho brasileiro".

Com a redemocratização na década de 80, aumentou o número de casos de corrupção que chegam ao conhecimento popular, seja por intermédio da mídia ou por instituições como o Ministério Público e o próprio poder Legislativo. Não porque, necessariamente, a coisa piorou, mas porque o acesso à informação melhorou. Essa grande quantidade de casos divulgados e a sensação de que boa parte deles permanece impune foi levando a sociedade a perder a confiança no Estado e na política. Essa descrença somada aos exemplos históricos faz com que a população passe a acreditar, erroneamente, que a corrupção já está forjada em nossa nação e que não há nada a ser feito. O que é um erro. Protestar é fundamental e muda sim.

Alguns amigos teceram críticas às marchas contra corrupção que ocorreram em várias cidades brasileiras neste 7 de setembro. Reclamaram contra o discurso supostamente vazio ou parcial com relação à corrupção adotado, do tipo, "sou contra, mas não sei o que fazer para resolver" ou "sou contra, mas não mexa no meu queijo". Haja vista que corrupção não é monopólio de determinado grupo político, mas prática que perpassa todos os partidos hegemônicos, isso soa estranho para eles.

Eu, não. Achei ótimo. Não vejo problema em manifestações que se indignam contra as coisas, mesmo que parte dos que protestam estejam na gênese do problema. Espero que chegue o momento em que todo dia haja um protesto, com os cidadãos retomando a rua – mesmo que eu não concorde com boa parte deles. Afinal, no debate público de idéias decorrente da publicização de diferentes discursos, vamos ver quem sobrevive ao bombardeio da crítica. Por fim, esses mesmos amigos não reclamaram dos protestos que antecederam o impeachment de Collor, mesmo sabendo do uso político de muitas ações que levaram a ele. Poderia discutir aqui horas sobre isso, mas não vou. Na verdade, como oportunista que é todo jornalista, usei isso de gancho para falar um pouco questões ligadas ao combate à corrupção.

Tenho recebido muitos e-mail com pessoas pedindo uma manifestação sobre o assunto – como se eu fosse especialista, mas vá lá (essa é a deixa para um leitor grunhir: "você sabe do assunto, porque mama nas tetas do Estado!" – risos. Adoro meus leitores).

É fácil notar que as medidas punitivas à corrupção têm mais visibilidade na mídia e entre a sociedade do que aquelas que tentam prevenir. O escândalo político tem o poder de atrair como uma novela, distribuído capítulo a capítulo pelos veículos de comunicação – muitas vezes pensando mais em audiência ou circulação do que na divulgação do caso. Discutir mecanismos para dar transparência prévia é mais chato do que assistir a programas de jornalismo sensacionalista, que adotam uma trilha sonora tensa quando registram a prisão de algum bandido do "colarinho branco".

Simplificar as estruturas atuais e garantir regras claras e inteligíveis à administração pública fazem parte da prevenção. Muitas vezes você tem um impedimento do cidadão de conseguir ser atendido nos serviços públicos. A estrutura complexa chega a "espantar" a população com códigos difíceis. No Brasil, a interface entre sociedade e governo não é amigável. A burocracia, o corpo do funcionalismo público e os regulamentos que devem facilitar a vida da população acabaram se tornando em sinônimo de coisa emperrada, displicente, corrupta. Aparecem, então, pessoas que cobram para desobstruir a ponte que deveria ser livre naturalmente. Criamos dificuldades para alguém vender facilidades. Esses intermediários podem ser legais, como no caso dos despachantes ou ilegais, a exemplo de funcionários bem relacionados dentro dos órgãos públicos. Houve avanços nos últimos anos, mas há muito a fazer.

E se a população percebe que governo e Justiça funcionam, vai ser mais difícil usar o chamado "jeitinho brasileiro" para conseguir ter uma reivindicação atendida de forma mais célere. Por exemplo, a implantação do Código de Defesa do Consumidor – um dos mais avançados do mundo – substituiu a necessidade de se ter uma boa relação com o comerciante para trocar um produto defeituoso por um suporte legal. O brasileiro percebeu que esse instrumento funcionava e passou a se utilizar das vias corretas para a solução dos seus problemas. A ação rápida de Procons e do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) também ajudaram nessa conscientização do consumidor.

Não se pode esperar que alguém acate uma regra por livre e espontânea vontade, baseado em um compromisso ético, uma moral interior ou na idéia de bem comum. Respeitamos as leis porque elas vêm acompanhadas de ameaças de sanções a quem transgredi-las. Para entender melhor, basta lembrar o que acontece no cotidiano. A população da cidade de São Paulo passou a utilizar o cinto de segurança não pelo fato de considerá-lo um item de segurança importante, mas pelo medo da multa.

Pode parecer autoritário, mas apenas com uma fiscalização rígida é possível fazer com que as leis que orientam a administração pública sejam efetivamente cumpridas, as deficiências detectadas e os ralos de dinheiros estancados. O controle dos órgãos públicos pode ser feito tanto internamente, com a prestação de contas à esfera de governo a que estão subordinados, quanto de forma externa, pela sociedade civil, mídia, sindicatos, associações empresariais, Ministério Público, Tribunais de Contas e entre os próprios poderes. Esses mecanismos de controle precisam ser fortalecidos, ganhar mais poder e acesso às informações.

O papel fiscalizador da imprensa precisa ser aprimorado. É praticamente impossível que certos veículos de comunicação tragam à tona denúncias de corrupção uma vez que eles estão nas mãos das mesmas famílias que há décadas ditam os rumos da política. Isso acontece tanto no Nordeste (os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, os Collor, em Alagoas) quanto no Sudeste. Isso se repete em certos veículos de alcance nacional também, é claro.

É difícil acreditar que uma denúncia de corrupção que afete amigos ou parceiros políticos será devidamente apurada nesses casos. Há de se fortalecer os veículos, sem vínculos políticos, garantindo liberdade de expressão. Certamente, a solução para dar passagem às vozes dissonantes é a internet. Estamos apenas engatinhando com isso.

Por fim, a palavra nepotismo vem do latim "nepote" e que significa neto ou sobrinho e ela começou a ser utilizada para designar os privilégios que os papas concediam a seus familiares. Apesar de não ser proibida legalmente, a prática de irmãos, primos, cunhados garantindo cargos públicos é rejeitada pela sociedade civil. Ela é uma das expressões mais conhecidas da relação que a elite brasileira estabeleceu com o Estado. Muitos parlamentares e governantes consideram normal colocar parentes em cargos que requerem confiança e dependem de nomeação.

A solução para o problema passa em reduzir o número de cargos de confiança, garantindo que o acesso a mais e mais funções se dê por concurso público, por mérito, e não indicação. Cria-se, dessa forma, um corpo burocrático permanente de qualidade, independente do poder de plantão.

Só por curiosidade: em 2000, um deputado federal propôs uma lei para "limitar" o abuso, reduzindo para "apenas" dois o número de familiares que poderiam ser contratadas. Ele não é mais deputado. Hoje é vice-presidente da República.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.