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Leonardo Sakamoto

Chuvas em SC. Porque a história se repete como farsa

Leonardo Sakamoto

09/09/2011 19h26

Os temporais que atingem Santa Catarina já deixaram cerca de 800 mil pessoas afetadas em 81 cidades desde quarta (7), de acordo com o UOL Notícias. Mais de 55 mil foram para casas de parentes e amigos e 8 mil não têm para onde ir. Até agora, dois mortos.

O governo catarinense culpa a natureza e a estatística, pois já teria chovido nos últimos quatro dias mais do que o esperado para o mês inteiro.

O legal é que todo ano é a mesma coisa. Se choveu mais do que deveria, fica a impressão de que não daria para fazer nada, não é? Culpa de Alá! Bem, isso se, há muitos anos, já não fosse típico a realidade de chuvas atípicas em certas regiões do país. Como já disse várias vezes, uma ironia que circula em redações nesses dias aquáticos é que, se todo o ano chove mais do que a média, alguém esqueceu de corrigir a média.

É claro que os cálculos não são simples e levam em conta séries históricas, mas, de qualquer forma, criticar isso tem o mérito de gerar alguns debates: por exemplo, como a realidade é avaliada e quais as medidas tomadas a partir daí. E não estou falando de sistemas de alertas (até porque o governo federal já avisou que vai levar anos para fazer algo que já deveria ter feito há outros anos) e sim de políticas de habitação decente, saneamento, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo…

(Vou fazer de novo a mesma experiência que fiz tempos atrás. Atenção para o texto a seguir:)

Com exceção dos fanáticos religiosos que enxergam sinais da primeira ou segunda vinda do messias (dependendo da religião em questão), apenas os mais míopes não percebem que o planeta está dando o troco. Não estou falando apenas do aquecimento global e das já irreversíveis mudanças climáticas que vão gratinar a Terra nos próximos séculos, mas também dos crimes ambientais que fomos acumulando debaixo do tapete e que, agora, tornaram-se uma montanha pronta a nos soterrar.

Falamos de tragédias em Santa Catarina, em Angra dos Reis, na Ilha Grande, em São Luiz do Paraitinga, no Jardim Pantanal, em Alagoas, em Mauá, como se fossem situações desconectadas da ação humana, resultados da fúria divina e só. Um prefeito de uma cidade atingida disse que só restava a ele rezar para Deus controlar as águas. Coitada da população que votou nele e agora vê o administrador do município "terceirizando" o trabalho para o plano superior, provavelmente dando continuidade ao que foi feito pelos que vieram antes dele.

A declaração é da mesma escola daquela de um assessor de George W. Bush quando questionado sobre a herança deixada às próximas gerações pelos gases geradores de efeito estufa da indústria norte-americana. Não me lembro da frase exata, porque lá se vão anos, mas foi algo do tipo: "isso não será um problema, porque Cristo voltará antes disso". Depois alguém pergunta por que a Cacique Cobra Coral ganha tanto dinheiro…

Um renomado cientista declarou pouco antes de uma cúpula do clima que era melhor deixar os fatos tomarem seu curso natural, o mundo aquecer, refugiados ambientais quadruplicarem de número, cidades nos países ricos serem invadidas pelo mar, a fome surgir no centro do mundo. Só assim pessoas e países tomariam atitudes reais. Situação que, no Brasil, é vulgarmente conhecida como "a hora em que a água bate na bunda". O problema é que, se nada for feito até lá, quando chegarmos nesse ponto, talvez não haja mais tempo para nada, além de lamentar. E rezar.

O fato é que ocupação irregular, planejamento, plano diretor, reforma urbana são expressões ouvidas apenas no tempo das chuvas. Na seca, elas evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de pobres e ricos, que continuam construindo, desmatando e poluindo. Suas razões são diferentes, mas o efeito é o mesmo. Vale lembrar que tudo isso dito aí em cima não gera um voto, pelo contrário: quem é o doador que vai ficar feliz por ter a construção de sua casa em uma área de preservação ambiental embargada? Ou qual o apresentador de TV, que teve sua pousada de luxo removida de um paraíso ecológico por estar em local impróprio, toparia fazer campanha de graça para o político que atuou firmemente para a referida pousada ir ao beleléu?

Considerando que quando há um problema urbano os mais pobres são expulsos do lugar onde estavam para um lugar perto da esquina entre o "não me encha o saco" com o "não me importa aonde", é de se esperar também que a remoção deles de áreas de risco e de locais inundáveis também seja precedida de grandes protestos que irão reverberar nas urnas. Então, ninguém faz nada, só promete e faz cara de preocupado e de entendido. Afinal, é de palavras vazias que vive nossa política.

Como já disse aqui neste espaço, qualquer solução eficaz adotada vai passar por mudanças no comportamento de todos nós. Como diria Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência, "todos querem a liberdade, mas quem por ela trabalha?" No Brasil, muito poucos. A maioria segue escondida no conforto do anonimato, defendendo o seu, fazendo meia dúzia de ações insignificantes para dormir sem o peso da consciência e o resto que se dane. Não querem mudanças no modelo de desenvolvimento que impactaria o "American Way of Life" que importamos, apenas reciclar latinhas de alumínio e dar três descargas a menos no vaso sanitário por dia. E seguem respondendo de boca cheia que fariam de tudo para ajudar o meio ambiente. E não conseguem, nem ao menos, votar direito.

Agora, deixa eu explicar a experiência. Postei o texto acima no início deste ano e, antes disso, no começo do ano passado. Não foi necessário mudar nada, ele é idêntico! Não é que o trabalho da imprensa seja cíclico, a incompetência do poder público que continua recorrente. Com base nisso, estimo que, em breve, vamos ter templates prontos em que é só trocar o nome das vítimas de enchentes e inundações para que a matéria esteja pronta.

Estragamos o meio em que vivemos. E não nos preparamos para as consequências. O problema é que a maioria dos que se estrepam com isso são pobres, que não tem como se defender. Pois quando uma catástrofe atinge uma região, os mais ricos vão para hotéis ou saem da cidade (de Blumenau a New Orleans), enquanto os mais pobres seguem para ginásios ou ocupam os obituários. E, como pobre tem as montes, que se dane.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.