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Leonardo Sakamoto

Kassab deveria ir trabalhar de bicicleta

Leonardo Sakamoto

22/09/2011 10h48

Uma ciclovia com 840 metros de extensão, ligando a estação Butantã ao portão principal da Universidade de São Paulo (USP), está sendo inaugurada hoje. De acordo com o prefeito Gilberto Kassab, por enquanto dez bicicletas serão disponibilizadas na Estação Butantã.

Até porque, como sabemos, há apenas dez pessoas que descem nessa estação e vão para a Cidade Universitária.

Nesta quinta, em que comemoramos o Dia Mundial Sem Carro (que, pelo trânsito nas ruas da capital paulista, mais parece o Dia Mundial Sem Carro na Garagem), essa ciclovia parece até uma piada de mau gosto. Afinal de contas, durante o planejamento da linha 4-amarela, discutiu-se a construção da estação na própria universidade ou mesmo a criação de uma derivação até ela – como ocorrem em outros metrôs pelo mundo. Em vão: a linha passa ao largo, fazendo com que uma legião de funcionários, professores e estudantes sem carro tenham que esperar um longo tempo para pegar o ônibus circular gratuito da USP ou caminhar até a bolha, ops, o campus.

Isso não é uma crítica às bicicletas, pelo contrário. Amo a minha e não a uso apenas para lazer. Aliás, é ridículo que em uma cidade como São Paulo tenhamos uma rede merrequenta de ciclovias permanentes e que haja uma limitada integração bicicleta-metrô-ônibus. O problema é que, para "compensar" uma profunda política de exclusão social, apresentou-se uma solução: 840 metros de ciclovia.

A USP possui um muro ao seu redor – muro físico que se traduz socialmente. Os cidadãos comuns, que não têm acordos de uso do campus ou não são parte da comunidade de estudantes, professores e funcionários, acabam não podendo usufruir desse espaço público entre a tarde de sábado e o domingo – logo no momento em que teriam para descansar de uma semana de trabalho.

A discussão é antiga. Mas a Doutrina Bush Acadêmica, de segurança interna a todo o custo, é bem forte porque vence sempre. Sempre ouço da boca de defensores de uma USP asséptica e árcade aos finais de semana que falta pessoal para garantir a integridade do patrimônio.

Uma ciclofaixa que funciona aos domingos em São Paulo vai até a porta da USP, mas não é permitido nela adentrar. Você é obrigado a fazer uma curva entre a rua Alvarenga e a Avenida Afrânio Peixoto, que leva as pessoas para longe da universidade depois de pedalarem tanto em direção a ela. O que é simbólico do nosso país e da forma como a nossa elite, do qual não me excluo, relaciona-se com o mundo. A USP é um orgulho para a nação e aos domingos você poderá contemplá-la de bicicleta. De longe, é claro, e sem tocar – por favor.

Isso tem o mesmo DNA da discussão sobre a localização da futura Estação Higienópolis, que levou a um churrascão-protesto em maio deste ano quando alguns moradores do bairro pressionaram para que a linha passasse ao longe de seus apartamentos bonitos.

Outro exemplo é o bairro de Georgetown, localizado em Washington DC, capital dos Estados Unidos, que não tem estação de metrô. A despeito de supostas dificuldades técnicas para levar o trem subterrâneo até a endinheirada localidade, onde se encontram lojas de grife e restaurantes famosos, os moradores de lá – como os de Higienópolis – também pressionaram contra a abertura de uma estação. Quem quiser chegar tem que ir por cima ou andar mais de 1,5 quilômetro da estação de metrô mais próxima.

Mais de 1,5 km. Pouco mais de 800 metros. Uma distância curta, mas que mostra o tamanho do desrespeito do poder público pela maioria da sociedade.

São Paulo vai se aprimorando na arquitetura e no urbanismo da exclusão. Traçados do metrô também têm o objetivo claro de separar, alimentando mais ainda a ignorância que gera a intolerância, o medo e as cercas eletrificadas que circundam casas e apartamentos de luxo.

Muros não precisam ser feitos de concreto. Também podem vir na forma de ações que garantem bairros e universidades nobres supostamente protegidos contra os seres de fora (que devem existir para servir e não para ter liberdade para irem onde quiserem na hora que quiserem). E de políticos que existem para cumprir os desejos de determinadas classes sociais a que eles pertencem ou que financiam suas campanhas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.