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Leonardo Sakamoto

Tratados como animais. De abate, não de estimação

Leonardo Sakamoto

25/10/2011 20h58

Cuiabá – Há mais de dez anos, uso a expressão "tratados pior que certos animais" para se referir às condicões a que determinados produtores rurais sujeitam seus empregados (o "certos" se dá pelo fato de que existe muito bichinho de estimação com consumo per capita bem maior que muito brasileiro). Muitos dizem que exagero nessas horas.

É mesmo?

De acordo com reportagem de Bianca Pyl, da Repórter Brasil, uma operação do grupo móvel de fiscalização do governo federal encontrou 19 trabalhadores, um deles com 17 anos de idade, em condições análogas à escravidão em propriedade rural pertencente ao médico Gilson Freire de Santana, que foi prefeito de Açailândia (MA) entre 1997 e 2000 e é dono do Hospital Santa Luzia. Do total de libertados da Fazenda Santa Maria, 15 dormiam no curral, ao lado de animais e de agrotóxicos. As outras quatro pessoas resgatadas estavam em uma casa precária de madeira, com o teto prestes a desabar.

Os empregados dormiam em redes próprias e enfrentavam dificuldades para descansar por causa do barulho dos animais. "Quando dava 3h da manhã, ninguém conseguia dormir mais. Nosso horário [para acordar] era 6h30, mas o vaqueiro chegava gritando com os bichos e aí era uma barulheira danada a madrugada toda", revelou um dos libertados.

Os libertados eram responsáveis pela limpeza do terreno para formação de pastagem, além de manutencão e ampliação de cercas. A operacão foi realizada em setembro, mas os valores devidos só foram pagos aos trabalhadores um mês depois.

Não é a primeira vez que trabalhadores são encontrados dormindo em currais e não será a última.

O que me lembra um caso ocorrido há três anos no Rio Grande do Sul, quando auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e procuradores do Ministério Público do Trabalho proibiram que empregados de fazendas dormissem junto com os animais durante a Expointer, uma das mais importantes feiras agropecuárias do mundo, realizada anualmente no Estado. Creio que é desnecessário explicar o porquê da proibição (caso alguém ache normal dormir com o gado no curral, por favor pare de ler este post e mude de blog). Houve revolta dos proprietários rurais e um deles, "doutor em direito e pecuarista", escreveu um artigo que circulou na rede, defendendo o sentido de "tradição".

Mas também eram "tradições" a possibilidade legal de comprar seres humanos (até 1888) ou a impossibilidade de mulheres votarem (até 1932). Muitas aberrações da humanidade foram – e são – justificadas por serem tradições, ou seja, mantras repetidamente cantados, porém dificilmente discutidos. Na verdade, elas são apenas construções sociais, normalmente impostas ao longo dos anos pelos mais fortes até serem serem aceitas por determinado grupo sem que se lembre de onde ela surgiu.

É a tradição do local dormirem com o gado? Vamos criar outra! De agora em diante passa a ser tradição o dono da fazenda dormir com o gado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.