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Leonardo Sakamoto

Pena de morte para quem maltrata cachorro

Leonardo Sakamoto

22/12/2011 14h10

A internet replicou imagens bizarras de uma mulher espancando um cachorro. Para ela, todo o rigor previsto em lei, é claro. O problema é que começaram a pipocar no Twitter, Facebook, blogs e afins uma miríade de pessoas, tão dodóis quanto a dita, sugerindo linchamento em praça pública, imolação em fogueira, separação de membros por cavalos em fúria, pisoteamento por bodes chapados em ácido e até assassinato. Outros queriam a aplicação imediata da lei de Talião, o velho olho por olho, dente por dente. Ou seja, fazer dela a mesma peteca em que transformou cretinamente o au-au. O mais interessante é que os comentários da turba foram ditos e reditos, aprofundados e revisitados, sem o menor pudor. Era sangue que o povo queria. Mesmo para os padrões covardes do anonimato na internet (tem gente que se protege atrás de um monitor pois, na vida real, sua coragem é menor que um mouse), esse caso assustou.

E vamos indo da barbárie para a decadência sem passar pela civilização.

Algum fuinha vai tirar o pó do seu Tico-e-Teco e dizer: "Ah, lá vem o japa defender bandido". Ô frase que me dá preguiça da humanidade! Pode ser uma visão por demais hobbesiana do mundo, mas o Estado – esse cretino opressor de uma figa – está aí para impedir uma catástrofe maior (ao menos enquanto não tivermos consciência o suficiente para tomar o seu papel – mas isso é outra história). E ao criticar linchamentos públicos, não defendo "bandido", mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, abrimos mão de resolver as coisas por nós mesmos para impedir que nos devoremos. Se a máquina está com defeito, conserte-a. Não a defenestre.

No ano passado, um caso dobrou meu consumo diário de Pantoprazol. Cirso Fernandes Guilherme foi espancado até a morte e teve a casa incendiada e o bar destruído por uma turba de 20 tresloucados, após ser acusado de ter sido o responsável pela morte de uma adolescente de 14 anos em Marília (SP). Exames preliminares, mostravam que a jovem não havia sofrido violência e poderia ter morrido por outro motivo.

Cirso não teve direito à defesa ou à recurso. Foi julgado e executado pela irracionalidade coletiva. Para muita gente, esse tipo de decisão sumária é linda, seja feita pelas mãos da população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros, imagine sem ele? Como não dá para dar Ctrl+Z em injeção letal, imagina a quantidade de "Ops, foi mal" seguida de indenizações contra o Estado que surgiriam pelo rosário de burradas cometidas se a pena de morte fosse aqui legalizada?

"Se a gente fez, ele deve. Alguma coisa ele deve." A frase, dita por uma pessoa que participou do linchamento, perturba. O morto é culpado porque nós o punimos. Nem o pessoal do Monty Phython faria melhor.

Um pecuarista, que já havia sido flagrado com trabalho escravo, deixou de pagar pela enésima vez o salário de seus empregados, anos atrás, no Sul do Pará. Dizem as autoridades locais que, enfim, os peões resolveram se rebelar: fizeram uma emboscada na porteira e, quando ele chegou, teriam dado cabo da sua vida a golpes de foices e enxadas. Vingança? Idiotice.

Sabemos da dificuldade de levar um tipo desses a julgamento e, estando lá, de conseguir uma condenação real por seus crimes. Mas creio que todos os que lutam para que Justiça não seja uma palavra bonita numa capa dura de um livro não se sentem contemplados com o passamento do fazendeiro supracitado ou de figuras folclóricas como Augusto Pinochet, Suharto, Erasmo Dias, Coronel Ubiratan, e tantos outros que se foram antes de responder pelo que fizeram. Não quero uma saída "Nicolas Marshall". Quero apenas que a Justiça funcione. E, com isso, a sociedade consiga saldar as contas consigo mesma, discutindo-se, entendendo-se.

Não era bom marido? Mau pagador de impostos? Trapaceava nas cartas? Vendia bebidas vencidas ou não lavava os copos com decência? As porções servidas no bar não eram dignas? Era avarento, invejoso, preguiçoso? Lançava-se à luxúria? Torcia para o time errado? Dava "bom dia" de dentes cerrados? – ah, os dentes cerrados… Entregava-se à bebida? Não ia à missa todos os domingos? Era econômico nos elogios? Ou, quiçá, pior? Usava mão-de-obra escrava? Violentava crianças? Maltratava animais? Pau nele. De vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos bandidos, dos "mocinhos" ou de nós mesmos.

Bandido bom é bandido morto? Para começo de conversa, diga-me com quem andas que te direi quem és. Afinal de contas, matar é solução para pau que nasce torto, que não tem jeito, morre torto. E, pior ainda na periferia, onde filho de peixe, peixinho é. Revidar é nosso direito, pois quem com ferro fere com ferro será ferido. Ou eles ou nós, pois o pior cego é aquele que não quer ver.

É tão gostoso repetir idéias feitas sem precisar pensar, né?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.