Topo

Leonardo Sakamoto

Indústria brasileira de armas mira países pobres para crescer

Leonardo Sakamoto

02/02/2012 04h46

O Brasil pode até ser um país que defende a paz no cenário internacional. Mas não deixa de ganhar um bom dinheiro com a venda de armas a outros Estados, principalmente armas leves – aquelas que podem ser carregadas por uma pessoa, como revólveres, pistolas, rifles e fuzis. O foco do comércio tem sido a Ásia e a África, onde se encontram graves conflitos armados em curso.

O jornalista Daniel Santini, editor da Repórter Brasil, desenvolveu uma extensa pesquisa sobre a produção e exportação de armas leves brasileiras, fruto de uma pós-graduação em jornalismo internacional. O estudo deve ser publicado em livro neste ano, mas pedi a ele um texto para o blog. Segue o texto:

A produção nacional de armas leves disparou no final da última década. De 2005 a 2010, as indústrias venderam 8.822.720 milhões de unidades, praticamente metade no Brasil (4.339.846) e metade no exterior (4.482.874).

Só no mercado interno, as vendas anuais chegaram a mais do que dobrar no período. O número de peças comercializadas no país saltou de 469.097 em 2005, para 831.616 em 2010, incluindo um pico de 1.001.549 em 2009, de acordo com levantamento feito pelo Exército a pedido da reportagem. O valor das exportações também cresceu significativamente. De US$ 109, 6 milhões em 2005, o valor movimentado pelas vendas passou para US$ 293 milhões em 2011, com um pico de US$ 321,6 milhões em 2010, de acordo com dados Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Não há dados referentes à evolução da venda de armas ano a ano no exterior, apenas o total de armas comercializado no período.

Os números sobre a produção nacional são inéditos e fazem parte de uma série especial de reportagens da Agência Pública, baseados no estudo que realizei, da qual participaram também as repórteres Natalia Viana e Jessica Mota. Os textos completos podem ser acessados a partir deste link. Trata-se da primeira vez que dados referentes à venda de armas leves foram divulgados por órgãos governamentais. O setor é marcado pela falta de transparência e as indústrias relutam em repassar dados sobre a produção alegando preocupação com segurança.

A fabricação disparou nos últimos anos muito em função de incentivos previstos na Estratégia Nacional de Defesa, promulgada em 2008, e que determinou, entre outras medidas, a criação de linhas de crédito especial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. O principal conjunto de diretrizes das Forças Armadas determina que o governo incentive exportações e ajude na conquista de novos mercados. Tal política teve início com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi mantida na gestão da presidente Dilma Rousseff.

Mesmo com a substituição de Nelson Jobim por Celso Amorim no Ministério da Defesa, o apoio à expansão da produção e exportação de armas foi mantido e até ampliado. Em 30 de setembro do ano passado, o Governo Federal anunciou a Medida Provisória 544, que prevê regime especial de tributação e novos incentivos. Com apoio do governo, as perspectivas de ganhos são tão altas que até grupos empresariais sem tradição na área criaram linhas de "defesa" para produção de armas, tais como a Odebrecht. A Embraer, que já produz equipamentos militares, aumentou seus investimentos, desenvolvendo o departamento de defesa e associando-se a empresas estrangeiras. O peso desses gigantes pode alterar a configuração do setor, com a instalação de mais fábricas para a produção de armas pesadas, tais como mísseis, submarinos e aviões de combate.

África e Ásia – Por enquanto, é na venda de armas leves que o Brasil se destaca. O país é considerado o quarto maior exportador do planeta e as indústrias brasileiras traçam metas de conquistar novos mercados e, desta forma, seguir expandindo as linhas de montagem. Reunidos no Comitê da Cadeia Produtiva da Indústria de Defesa (Comdefesa), organizado pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), os industriais organizaram um Grupo de Trabalho de Exportação, que estabeleceu em reunião realizada em fevereiro de 2009 que a prioridade devem ser "países que realmente tenham condições de negociar com as indústrias do setor de defesa brasileiras sem apresentar restrições, exigências, ou mesmo sofrerem imposições de organismos aos quais fazem parte".

A relação original feita pelos fabricantes de armas de países com mercados a serem conquistados incluía Bahrein, Líbia e Somália. O Ministério das Relações Exteriores, no entanto, fez restrições a alguns nomes e, na relação final, apresentada em março de 2009, foi determinado que, com apoio do governo, as indústrias tentariam conquistar (como aparece na lista): "Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e México, na América Latina; África do Sul, Angola, Namíbia, Tunísia e Zimbábue, na África; Arábia Saudita, Emirados Árabes, Kuwait, Marrocos, Oman, Qatar, no Oriente Médio (sic); Indonésia, Malásia, Paquistão, Sri Lanka e Tailândia, no Extremo Oriente".

Tal política traçada em 2009 têm tido continuidade, conforme explicou Jorge Py Velloso, vice-presidente da Taurus, principal indústria do setor, durante a entrega do 39º Prêmio de Exportação da Associação dos Dirigentes de Marketing e Vendas do Brasil (ADVB/RS) no ano passado. "O mercado americano continua estável, com previsão de estabilidade pelos próximos três anos. O mercado global, principalmente na África, está crescendo; na Ásia também, e nós estamos procurando abrir mercado", declarou.

Entre os alvos da indústria de armas nacional estão países como o Zimbábue, que tem pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo, e campeões de violações de direitos humanos como a Arábia Saudita, cujo governo, segundo o último relatório da Anistia Internacional, tem reprimido e torturado sistematicamente cidadãos que fazem qualquer tipo de oposição.

A responsabilidade dos governos que financiam a produção e exportação de revólveres, pistolas e fuzis para países pobres tem sido tema de debate de alguns dos principais acadêmicos do planeta, e avançam as negociações para a construção de mecanismos internacionais para restringir e controlar o envio de armas para tais regiões. O que a indústria nacional pensa a respeito? Com a palavra, Jairo Cândido, presidente do Comdefesa, da Fiesp, em entrevista ao autor:

"Você não vai ter organizações mundiais cuidando do mercado. Cada nação é soberana. Seu povo merece respeito e tem o direito da sua autodeterminação. Tenha lá um ditador sanguinário ou não, o povo merece".

Atualizado às 9h30 do dia 02/02/2012. A informação sobre a Embraer, que ficou incorreta por erro de edição, foi corrigida. Obrigado aos leitores pelo alerta.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.